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Mostrando postagens de agosto, 2019

Os humanos e nós

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Acontecimentos recentes têm-me feito refletir acerca de um assunto pouco explorado por artigos científicos: as semelhanças entre humanos e ratos. Sujos, transmissores de doenças e muitas vezes indesejáveis, os espécimes da raça humana podem, à primeira vista, serem completamente alheios a nós, pequeninos e delicados. No entanto, ao analisar nossa infância, verifiquei algumas características em comum entre nossas crianças e os nenéns dos homens. Ambos vêm ao mundo desprovidos de pelos e de intelecto; ao verem a provedora, a primeira coisa que fazem é lamberem-lhe as tetas. E, ao crescerem, seus rabos tornam-se mais volumosos e atraentes. Já adultos, muitos humanos e ratos transformam-se, lamentavelmente, em criaturas gulosas, mesquinhas e oportunistas, apodridas pelos próprios maus hábitos. Ademais, aparentemente inteligentes, são ambos, na verdade, muito suscetíveis a caírem em armadilhas. Por sorte, sou, particularmente, um rato erudito; quero dizer, letrado; e, como são

Meu cais

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“Cais”, composição de Milton Nascimento, é uma de minhas músicas preferidas. Ela é majestosa e pequenina. Singela e monumental. “Cais”, para o dicionário Aulete , é, em um porto, o “lugar no qual um navio atraca para embarque e desembarque de passageiros e mercadorias”. Não obstante, nos versos de “Bituca”, um cais, quase paradoxalmente, pode ser inventado “para quem quer se soltar”. Pois, soltando-me das linhas de Milton, encontro na voz de Gal uma conexão: “Passagem nessa vida passageira... para uma vida ainda passageira. O sonho é ter tudo dissolvido: o corpo, a mente, a fonte da lembrança. Enfim, ponto final na esperança: somente as ondas soltas no oceano” – composição de Gil. A efemeridade da vida, a transitoriedade das coisas: talvez sejam esses os elementos comuns às duas canções. “Eu queria ser feliz... Invento o mar, invento em mim o sonhador!”, sussurra Nascimento. Não tenho certeza se sou feliz. Sei que, às vezes, sou. Ou melhor, “estou”. Mas, à semelhança do eu lí

Enxergar o que não se vê

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Gosto de muitos jornalistas. E um deles é Fernando Gabeira. Nascido no início da década de 40, Gabeira cativa-me em muitos sentidos. Já brinquei em certa ocasião com um amigo meu que, quando eu crescer, quero ser como o referido profissional em alguns aspectos. Também admiro muito sua prima, a também jornalista Leda Nagle. Sem obstáculos, tenho algumas divergências em relação às opiniões políticas de ambos. Ora, Gabeira já foi político. Filiou-se ao Partido dos Trabalhadores e ao Partido Verde em tempos passados. Às vezes, escuto o jingle de uma campanha sua. “Rio de Gabeira, 43!” . Muito “chiclete”; trata-se de uma música realmente aprazível. De meu ponto de vista poético-musical, a pequena composição é quase impecável. Bem, hoje li um artigo da revista Veja , escrito por Reinaldo Azevedo em março de 2008. Nele, o autor apontou que Gabeira, naquele contexto, defendia que, se eleito prefeito do Rio de Janeiro, não aceitaria indicações políticas para ocupar cargos no governo.

Cartas privadas

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O filósofo Luiz Felipe Pondé gosta de ressaltar que a economia é uma ciência triste. Concordo. E acrescento: a respeito da brasileira, entristeço-me toda vez que procuro inteirar-me sobre seus últimos fatos. Hoje mesmo li que o Governo anunciou seu desejo de privatizar dezessete estatais. Entre elas, os Correios. Ora, eu, como amante de escrever cartas à mão, jamais seria a favor da privatização de tão importante estatal brasileira, a qual encerrou 2018 com lucros líquidos de R$161 milhões. Confesso que já escrevi cartas a Uberaba, Monte Verde e Patos de Minas, e nem sequer uma delas foi desencaminhada ou entregue em data mui posterior à prevista. Também enviei envelopes a Uberlândia e a Santa Maria, encaminhei livros a Brasília; nada foi extraviado. E, de forma semelhante, adquiri xicacas e utilidades: foram-me trazidas pelos Correios. Um catecismo, um violoncelo, um estilógrafo: tudo isso me veio por intermédio da referida estatal. E cartas escritas à mão. Para escreve

Silepse política

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O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em mensagem publicada em julho condenando ameaças a Miriam Leitão e a Sérgio Abranches, valeu-se de uma figura de linguagem chamada silepse. Tal ocorrido foi comentado pelo ilustre professor Pasquale, em seu cativante podcast da rádio CBN. Nesse caso em questão, foi empregada a silepse de pessoa. Segundo o dicionário Michaelis, esta é a “silepse em que a concordância não se faz com a pessoa expressa no discurso, mas com uma pessoa que está subentendida: Todos os cidadãos sofremos com a violência urbana ”. Nas palavras de FHC, as ameaças aos referidos escritores “são inaceitáveis e envergonham os que acreditamos na liberdade como base da convivência”. Ora, tal figura de linguagem também é conhecida por “concordância ideológica”, o que me é deveras interessante. Sem obstáculos, estamos na segunda metade de agosto, mais de um mês depois da publicação da mensagem do ex-presidente. E esta ainda me intriga. Sérgio Abranches é o pai d

Válvula de escape

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Creio que seja característica humana a dificuldade de se produzir bons resultados em determinadas áreas do saber. E tais dificuldades frequentemente levam a desgastes. O dicionário Aulete traz dois significados de “desgaste” de que gosto muito: um deles é a “deterioração material determinada pelo uso ou funcionamento”, e o outro é o “dispêndio de energia psíquica”. Enquanto tão somente a primeira definição recai sobre as máquinas, sobre o ser humano recaem ambas. Minha dificuldade do momento é compreender os conhecimentos teóricos e práticos que envolvem a automação industrial. Eu, que me identifico mais com as letras do que com os números, encontrei dificuldade quando essas passaram a limitar-se apenas a nomes de etiquetas em um programa de simulação. Por sorte, os afixos dos substantivos que nomeiam componentes pneumáticos são-me de grande ajuda. Os adjetivos que acompanham as válvulas são pragmáticos: “unidirecional”, “temporizadora”, “alternadora”. Isso me auxilia a ent

Mais que mil palavras

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Há quem diga que uma foto valha mais que mil palavras. Muita gente. Confesso que amo as palavras... Mas admito: uma imagem pode valer mais que um milhar destas minhas amiguinhas. Contudo, esta semana estive refletindo e veio-me à mente um pensamento aparentemente bobo, mas que eu gostaria de explicá-lo a seguir. Existe um caractere que vale mais que mil palavras. Não farei suspense: é a letra “a”. “A” é um quê interessantíssimo. No campo das interjeições, pode ser usada para exprimir alívio, dor, espanto, segurança, êxtase, tédio, raiva, indignação, incerteza, certeza, expectativa, quebra de expectativa... Entre tantas outras coisas. Em uma oração, “a” pode assumir papel de artigo. Em língua portuguesa, definido; em língua inglesa, indefinido. Também pode ser preposição. E ainda é possível combinar os dois sentidos, grafando uma crase em cima da letra: “Vou à livraria”. E “à” pode até mesmo equivaler a “à moda de” ou “à maneira de”. Como é possível? E ainda nem sequer men

O servo de minha prima

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Laura foi uma menina de bom coração para muitos, mas não para todos. Falo acerca de minha prima de primeiro grau, seis anos mais velha que eu. Seu irmão Fernando, três anos mais novo, igualmente. Hoje são “gente grande”, meus primos queridos. Apesar disso, ainda não se foi a época em que brincávamos juntos; o tempo nos possibilitou, na verdade, descobrir novos “brinquedos” e diversões... Mas a presente crônica metalinguística apresentará uma reflexão a qual tem sua gênese em nosso tempo de moleques. Recordo-me bem: eu amava visitá-los; fui por meus tios – seus pais –, sempre tratado com muita hospitalidade. Todavia, tenho a impressão de que a Laura nunca bastou os carinhos dos genitores. Por tal motivo, recorria aos serviços do irmão. Era uma comédia trágica. Laura subia em cima de uma cadeirinha e chamava, com voz soberana: “Fernando!” – e este vinha. “Quer ser meu escravo?” – e o pequeno sempre respondia positivamente; não tinha outra opção senão essa, já que, se negasse se

Modo de preparo

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  Hoje, enquanto eu andava pela rua, ocorreu-me a ideia de escrever uma receita de namoro. Não me refiro àqueles textos podres e pobres de gurus do amor, os quais mais se valem da função apelativa da linguagem do que da referencial. Veio-me à mente o objetivo de lavrar quase um algoritmo; algo que, se seguido à risca, desenrola um processo o qual leva ao namoro. Há alguns meses, li uma versão em espanhol de um livro que, em português, recebe o título O universo em um átomo , escrito pelo dalai-lama atual. Por meio de tal obra, pude constatar que Tenzin Gyatso é, em certa dose, fã do empirismo. A versão on-line do dicionário Michaelis traz, como significado para esse termo: “Sistema filosófico que nega a existência de axiomas como princípios de conhecimento, logicamente independentes da experiência, considerando apenas o que pode ser captado do mundo externo pela experiência sensorial, ou do mundo interior, pela introspecção”. Não sou muito admirador do empirismo, como o é o

A gíria que odeio

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Às vezes, no meio da noite, vêm-me à cabeça os versos: “Beleza, mano? Fica com Deus. Quando der, a gente se tromba, firmeza?!” - composição de Rodrigo Augusto de Campos belissimamente interpretada por Elza Soares. Os versos posteriores vêm carregados de gírias: “mil grau”, “mermão”, “pô”. Conheço alguns intelectuais que cultivam ódio áureo por essas palavras. Eu, amante da semiose social, jamais poderia detestar tais expressões. O dicionário Aulete traz, como definição para “gíria”: “Linguagem peculiar que se origina de um grupo social restrito e alcança, pelo uso, outros grupos, tornando-se de uso corrente”. Ora, como não amar a metamorfose da língua? Não obstante, para tudo há limites. E o limite de minha atração por gírias está situado a um abismo de distância de “tals” . Também já vi escreverem “talz” . Tais aberrações - “tals” e “talz” - vêm normalmente antecedidas pela conjunção “e”. Exemplo (história real): recentemente, um colega meu enviou-me a seguinte mensagem: “De

Sem relevo

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Há quem tenha pavor enorme por idiossincrasias. Não tenho. Em verdade, creio que estas contribuem para a formação de nossa identidade, e, destarte, é nosso direito escolher aquelas mais aprazíveis – reitero: é direito, não dever. Há, também, outras formas de edificar o próprio ser, muitas de modo singular: construir uma rotina interessante, ou simplesmente não ter uma; possuir um gosto musical próprio; adquirir um repertório literário que tem como essência a preferência pessoal; escrever. Não obstante, creio eu que certa coisa, sem dúvida, é uma pedra angular da identidade que uma pessoa possa ter: o vocabulário pessoal. Como canta Gal Costa: “Se Deus é pai, é a voz a minha mãe”. Uma atenção especial dou às interjeições. Minhas preferidas envolvem o cristianismo: “Santa Madre!”, “Mater Dei!” , “Santa cruz!”, “Virgem mãe!”. De igual forma, valorizo os “palavrões de seu”. Chamo de “palavrões de seu” aqueles contidos em um subconjunto do conjunto de palavrões o qual não possui inter

Santo Ailton

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A versão on-line do dicionário Aulete traz, em sua segunda acepção para a palavra “santo”: “Diz-se de pessoa canonizada pela Igreja ( santo  Antônio;  santa  Rita)”. E, em sua terceira: “Que vive conforme a lei de Deus, cumprindo os deveres religiosos; BONDOSO; VIRTUOSO : Uma  santa  mulher distribui todos os anos roupas aos pobres ”. Ora, tentam enquadrar Evita Perón à primeira definição que aqui apresentei. À última, frei Ailton. Não os mesmos fiéis. Mas, enfim, vali-me do Aulete para comunicar a todos que, depois do que presenciei hoje, creio que, em alguns anos, frei Ailton terá seu nível de “santidade” ascendido. Não, não saiam pesquisando por aí sobre frei Ailton. Ele será santo (verbo conjugado no futuro); portanto, pouca coisa acharão sobre ele na internet. Ainda. Frei Ailton está vivo: mal passa dos cinquenta anos. Ainda há de viver muito. Seguindo minha linha de raciocínio: o processo de canonização é, em geral, demorado. Antes de levar-se o título de “santo”, vem o de

Bodum

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Em um dia desses, estava eu a assistir a um programa de televisão em que o desafio era formar o maior número de palavras em determinado tempo, dispondo-se de apenas algumas letras. Por um momento, tive a atenção prendida quando a participante desafiada formou uma palavra que eu desconhecia o significado; em verdade, nunca a havia lido ou ouvido em qualquer cena de minha vida, se a memória não me enganava. Mesmo assim, logo a memória enganou-me e esqueci-me completamente da palavra; tive diversas vezes fortes ímpetos de conferir sua definição em um dicionário; todavia, não me vinha à mente sequer as letras utilizadas pela participante. Mas, semana passada, enquanto passei próximo a um terreiro, recordei-me do vocábulo: “bodum”. “Bodum” fez-me imaginar um líquido de cor escura, armazenado em um frasco de vidro em uma prateleira de madeira, que por sua vez ficava em uma dispensa ou porão de uma casa meio esotérica. O morador da residência, talvez um satanista ou terapeuta holíst

Divino fantástico

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Estava eu a desperdiçar tempo em redes sociais quando me deparei com a frase “Deus é fantástico”. Pensei, a princípio, tratar-se de algum ateísta praticante a criticar um cristão de menor prática. Ledo engano; com um pouco de atenção, percebi que as três palavras vieram de um ex-seminarista. Ora, fato é que ele abandonou o convento há algum tempo, conheço-o; não obstante, é de minha fé que ele ainda conserva a sua. Ou estaria eu duplamente enganado? Com um pouco de curiosidade, resolvi checar suas últimas publicações. Não; eu estava iludido em dose única. Concluí que “fantástico”, palavra que o dicionário Aurélio traz como primeira definição “Só existente na fantasia ou imaginação”, e, como quarta, “Falso, simulado, inventado, fictício”, estava sendo usada como elogio, algo próximo de “grandioso”. O crente não se fez descrente, ou sequer “crente” em seu sentido lamentável de brasileirismo. Minha curiosidade aumentou e tive ímpetos de digitar “Nossa Senhora das Letras” em um