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Mostrando postagens de março, 2021

“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”: breve reflexão teológico-semiótico-política em tempos de pós-verdade

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  O Evangelho da Liturgia de hoje contém um versículo construtivamente associado a Jair Bolsonaro. Trata-se de uma passagem do oitavo capítulo do Evangelho de João. A frase “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8, 32) é usada como instrumento político pelo presidente desde, pelo menos, 3 de maio de 2016. Nessa data, o então deputado discursou em uma sessão plenária da Câmara em que, após citar o referido excerto, disse que “obviamente, a verdade é Jesus, é Cristo”; mas, em seguida, complementou: “trazendo para o nosso paralelo aqui, o nosso nível dos mortais, [...] eu quero agradecer a manifestação de apoio que eu tive, [...] em especial do Rio de Janeiro, onde mais de 300 pessoas compareceram em meu condomínio apoiando as nossas verdades. A verdade nos libertará!”. Essa tentativa enviesada de contextualização da passagem bíblica se repetiu dezenas de vezes depois disso, sobretudo em sua campanha presidencial.   Em artigo publicado no ano passado na revista F

A visionária Marieta

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[História fictícia.]    Professora Marieta acaba de voltar da escola em que trabalha, em área nobre da cidade. Não fora lá para trabalhar, é claro, mas apenas para pegar um livro que havia deixado em uma gaveta de sua mesa antes de começar a pandemia. O livro se chama Faça você mesmo: sua felicidade depende única e exclusivamente de você . Trata-se de um best-seller de empreendedorismo/autoajuda, com milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. No caminho de regresso, enquanto dirigia seu carro de aproximadamente 70 mil reais, Marieta recordava os bons tempos pré-pandêmicos.    A docente sempre ia com seu carro, sozinha, até a escola. Nunca dera carona a alunos; sempre buscara uma relação tão somente profissional com seus discípulos. Porém, com o ensino remoto (que sua escola particular prontamente adotou), ela se sentiu mais próxima daqueles que agora estão do outro lado da tela. Talvez, por não os ver. Não os vendo, é mais fácil amá-los.    Marieta, pelo cargo que ocupa em sua es

Internet, tempos e vontades

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Fiquei dois dias sem internet. Eu estava na roça. O vento da noite de sexta-feira foi forte, e danificou a antena de internet da região. Felizmente, eu tinha bons livros comigo, e também minha família, e isso me ajudou a passar o tempo.   Ficar digitalmente isolado tem as suas vantagens. Antes de eu me mudar para Patos de Minas, isto é, quando eu ainda vivia no campo, a conexão era muito limitada. Praticamente inexistente. Quando ganhei meu primeiro celular, acho que em 2016, eu recebia mensagens por WhatsApp da seguinte forma: meu pai havia fixado uma roldana no alto de um eucalipto. Um circuito fechado de corda passava por essa roldana, no qual ficava presa uma garrafa PET com uma abertura no meio. Eu colocava o celular dentro dessa garrafa. Então, eu puxava a corda, e o aparelho era levantado alguns metros do chão. Lá no alto, o sinal fraco de internet, a cada quinze minutos em dias de céu claro, conseguia receber ou enviar uma mensagem. Em dias nublados ou chuvosos, era impossíve

Didi e a Ivermectina

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Em postagem de hoje (8) no Instagram, a Prefeitura Municipal de Lagoa Formosa informou que “Um grupo de empresários preocupados com o acelerado crescimento de contágios e mortes causados pela Covid-19 em Lagoa Formosa, entraram em contacto com o prefeito Didi para contar com o apoio da prefeitura na distribuição de 30 mil comprimidos de Ivermectina”.   O primeiro parágrafo do texto da postagem já mostra por que veio ao mundo, ao citar o tal grupo de empresários “preocupados” com a pandemia. Uma trupe de empresários querendo Ivermectina para o povo: 30 mil comprimidos para uma população de 18 mil habitantes. Se o texto terminasse com essa única informação inicial, ele já seria digno de reprovação; infelizmente, a postagem prossegue.   “O prefeito, que inclusive é usuário do medicamento (sic), determinou à Secretaria de Saúde que promova a distribuição da substância. O medicamento ficará à disposição nas UBS’s - Unidades Básicas de Saúde e será destinado àquelas pessoas que mani

Ninguém levou batatas

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  A briga de Falcão com os manifestantes hoje foi constrangedora para ambas as partes. Foi constrangedora para os comerciantes porque o novo lockdown não foi uma decisão municipal, mas estadual, e o prefeito não pode fazer nada para driblar essa ordem. E foi constrangedora para Falcão por motivos óbvios demais para serem escritos.   O desfecho do alvoroço foi o arremesso da máscara e dos papéis do prefeito no chão, por ele próprio. Aqui, foi constrangedor para a Patos de Minas inteira. Todos nós perdemos a briga. “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas” — escreveu Machado de Assis. Hoje, ninguém levou batatas. Os comerciantes e o prefeito receberam um pot-pourri de ódio e de compaixão, tanto da opinião pública quanto deles mesmos.   Não sei se ainda é válido apontar culpados pelo caos atual. Ao mesmo tempo, eu gostaria de poder afirmar que “cada um sabe de si”, mas seria mentira. Há muitos que não sabem de si; há muitos que não sabem as consequências dos próp