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Mostrando postagens de abril, 2021

Não foi nada ocasional

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  Quando eu era pequeno, ensinaram-me na escola uma música de Pindorama. “Vera Cruz, Vera Cruz, [...] não foi nada ocasional” . Esses eram alguns dos versinhos daquela canção infantil e também política, que questionava poeticamente os interesses portugueses e a “descoberta” do Brasil. Mas, na “Pindorama de dentro de nós”, em Patos de Minas, o texto da música veio-me hoje à tona ao ler sobre uma suposta comemoração cruel relacionada ao hospital particular Vera Cruz.   Em vídeo amplamente divulgado nas redes sociais, um homem exibe um espumante, dá gritos de alegria e bebe-o do “bico” da garrafa, diretamente com a boca. Ao lado, há pessoas aglomeradas. A bebida é passada a um segundo homem, de máscara. Alguém diz a ele para que tirasse a máscara a fim de beber o líquido. Assim o sujeito o faz, com a mesma energia do primeiro. O vídeo termina.   Lembrei-me, quando o vi pela primeira vez, da atriz Ilana Kaplan, nova febre do mundo digital com a interpretação da personagem Keila Mel

Outono das pontas

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  Meu corpo não demora a dizer-me que já é outono. Outono é uma estação que começa pelas pontas. As pontas dos continentes, em altas latitudes, são sempre as primeiras a dar a fria notícia a meio mundo: o verão termina. Em seguida, a ponta inferior dos termômetros chama o álcool para perto de si, convidando os homens a fazerem o mesmo, tomando taças de vinho tinto para aquecer seus corações.   As pontas das caducifólias praticam o desapego, entregando ao vento mensageiro suas folhas ressecadas e, desse modo, servindo de inspiração a poetas, cronistas, pintores e escritores de cartas. São meus dedos trêmulos os próximos a sentirem o outono. Os pés pedem meias, as mãos pedem luvas. Mas não tenho luvas, só meias, então tenho de esfregar as mãos, assim como os galhos fazem quando começa a ventar frio.   As pontas do nariz e das orelhas vêm em sequência. Para a primeira, bebo chá quente de alguma planta que não caduca, como a alfavaca. Para as segundas, não há outra escapatória que

Quando eu ficar velho

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  Quando eu ficar velho, quero ter uma casinha, pequenina, no campo, ao lado de um riacho com água fria e boa pra pesca. Ao fundo, um jardim, uma horta e um quintal com uma frondosa quaresmeira no meio. A dois quilômetros, uma colina verde, uma capela pequenina em riba do morro, aos cuidados de um capuchinho risonho que vem de vez em quando da cidade, e que gosta de andar descalço e de chupar jabuticaba quando é época. Vizinhos carismáticos, de boa prosa, não muito próximos nem muito distantes, vão comigo à missa pra rezar, e depois partilhar biscoitos, café, conversas. Debaixo do pé de manga do quintal gostará de tirar soneca Bilu, meu cachorro, arisco e brincalhão como nenhum outro. Figo, meu gato, vai estar dormindo debaixo do fogão a lenha, sobre o papelão que guardarei para acender o fogo. De vez em quando, Figo brigará com Bilu, e Bilu com Figo, mas logo farão as pazes, pois Gustavo, meu neto, os apascentará com um naco de pão quentinho. Será uma viuvez tranquila, olharei retrat

De volta à música

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  Após algumas semanas de silêncio, volto a escutar música. Há uma tirinha de Laerte muito interessante, em que um personagem diz buscar o silêncio porque gosta muito de música. Nos últimos dias, substituí notas por anotações, andamentos por tropeços, sóis por luas, fás por faltas e dós por compaixões. Restaram as fiéis e métricas pausas.   A verdade é que quase ninguém consegue ser fortíssimo por muito tempo. Nem mesmo forte. Muito menos piano. Há algo mais desnecessário do que um piano quando se quer silêncio? Já escreveu Alberto Caeiro: “Para que é preciso ter um piano?/O melhor é ter ouvidos/E amar a Natureza.” Nesses dias que passaram, meu teclado virou uma escrivaninha. Com efeito, é da minha Natureza espalhar papéis, livros... criar bagunças. Meu mundo é sempre como o de Caetano: fora da ordem. O xadrez de notas brancas e pretas serviu bem como mesa, ainda que demasiado estreita.   Acontece que nem só de silêncio vive o homem. Até mesmo os religiosos e as religiosas que