Outono das pontas
Meu corpo não demora a dizer-me que já é outono. Outono é uma estação que começa pelas pontas. As
pontas dos continentes, em altas latitudes, são sempre as primeiras a dar a
fria notícia a meio mundo: o verão termina. Em seguida, a ponta inferior dos
termômetros chama o álcool para perto de si, convidando os homens a fazerem o
mesmo, tomando taças de vinho tinto para aquecer seus corações.
As pontas das
caducifólias praticam o desapego, entregando ao vento mensageiro suas folhas
ressecadas e, desse modo, servindo de inspiração a poetas, cronistas, pintores
e escritores de cartas. São meus dedos trêmulos os próximos a sentirem o
outono. Os pés pedem meias, as mãos pedem luvas. Mas não tenho luvas, só meias,
então tenho de esfregar as mãos, assim como os galhos fazem quando começa a
ventar frio.
As pontas do nariz e das
orelhas vêm em sequência. Para a primeira, bebo chá quente de alguma planta que
não caduca, como a alfavaca. Para as segundas, não há outra escapatória que não
seja boas músicas. Vivaldi é de praxe, mas também Chopin e Prokofiev são bastante
convidativos.
Aos poucos, o outono vai
se interiorizando nas paisagens e nas criaturas. Para os seres racionais, não
demora muito até que ele toque o coração. Quando chega a essa parte, só poesia
ou companhia servem de lareira. Já os vinhos não têm mais o poder inicial de
antes. Como não tenho companhia, começo por Rilke: “Dia de outono”. Leio os
poetas de terras longínquas, onde o outono é mais definido e penetra mais
fundo. Murmuro que alguma tradução do poeta de língua alemã deixou a desejar e
passo a consumir Neruda.
Nas calçadas, além de
folhas calcadas há pessoas. Começam as campanhas de agasalho. Para que não
morra nenhum leiteiro das ruas, é preciso entregá-lo cedo; há muito frio no
país. Todos os anos as árvores, já sem teto, tentam oferecer mantos
marrons-avermelhados de folhas aos sem-teto. Mas sempre há alguém com uma
vassoura a varrê-las. É preciso muito algodão e muita lã para todos. O leite
pode ficar para outra estação do ano.
Que neste ano o outono seja sentido, mas não de forma intensa. Uma ponta de cada vez já é suficiente.
Comentários
Postar um comentário