A personagem
Enfim, eu estava prestes a realizar este desejo antigo, que passei a ter desde que me mudei para cá. Paguei o item na máquina de autoatendimento do supermercado e trouxe-o para casa. Retirei-o da embalagem. Estava frio. Um cheiro horrível tomou conta do ambiente. Com um garfo, experimentei.
Algumas experiências não precisam ser positivas para valerem a pena: aos olhos de Deus, um terço gozoso tem o mesmo valor que um doloroso etc. Meu paladar não se orientou pela medida divina — o cuscuz que eu acabara de provar não chegava aos pés do nordestino. Ainda assim, ter saciado o meu desejo fez compensar o dissabor.
Algumas semanas antes, eu começara a sair com um rapaz. Ele estudava na mesma universidade que eu. Nós nos conhecemos no cinema. Lá, assistimos a um drama francês. Apesar de ele ter permanecido sentado ao meu lado durante toda a exibição, notei-o somente ao final, quando eu me levantava para ir embora. Foi ele quem puxou assunto. Estávamos, até então, desacompanhados. Falamos brevemente do filme, sobre o qual compartilhamos opiniões muito diferentes. Ele era bonito. Perguntei se não gostaria de me acompanhar até a livraria, enquanto eu tentaria convencê-lo de que o que acabáramos de ver era uma obra-prima. Ele aceitou.
Quando quase chegávamos ao destino, ele concordou com a minha visão, o que interpretei como uma simples aquiescência masculina, cuja razão de ser é agradar a mulher. Perguntei a ele se gostava de ler. “Somente o que é bom”, respondeu-me. “E o que é bom?” “Estou empenhado em ler todas as obras de Annie Ernaux publicadas no Brasil.” Neste momento, olhei-o.
Alguns homens dizem gostar de certas cantoras de língua inglesa para conquistar mulheres. É algo simples de fingir. Basta decorar os nomes de algumas canções e reconhecer a fisionomia das estrelas, e então não restarão dúvidas de que o gosto é genuíno. É extremamente improvável, porém, que um homem, com o propósito de paquera, minta sobre gostar de certas escritoras. Ainda mais Annie Ernaux. Além de que ninguém é capaz de, por muito tempo, fingir-se leitor para um leitor experiente. Logo a insuficiência de livros se delata. Não é algo assintomático.
Duas semanas depois do cinema, três antes do cuscuz, lá estava eu em sua cama. Percebi que não era só em dramas franceses que nos desalinhávamos. A impressão que tive foi a de que aquela era a sua primeira vez. Concedi-lhe outra chance. A impressão que tive foi a de que esta era a sua segunda.
Na verdade, tampouco gostei do drama francês. Como era muito sexualizado, emiti — e por coerência sustentei — a opinião de que era magnífico com a esperança boba de, assim, ser desejada. Quanto ao cuscuz, depois de tê-lo provado, joguei-o fora. Mas confesso que, no futuro, apagada a memória do dissabor, se a mim for oferecido outro, com qualquer coisa de diferente, tenderei a experimentá-lo.
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