Não foi nada ocasional

 

Quando eu era pequeno, ensinaram-me na escola uma música de Pindorama. “Vera Cruz, Vera Cruz, [...] não foi nada ocasional”. Esses eram alguns dos versinhos daquela canção infantil e também política, que questionava poeticamente os interesses portugueses e a “descoberta” do Brasil. Mas, na “Pindorama de dentro de nós”, em Patos de Minas, o texto da música veio-me hoje à tona ao ler sobre uma suposta comemoração cruel relacionada ao hospital particular Vera Cruz.

 

Em vídeo amplamente divulgado nas redes sociais, um homem exibe um espumante, dá gritos de alegria e bebe-o do “bico” da garrafa, diretamente com a boca. Ao lado, há pessoas aglomeradas. A bebida é passada a um segundo homem, de máscara. Alguém diz a ele para que tirasse a máscara a fim de beber o líquido. Assim o sujeito o faz, com a mesma energia do primeiro. O vídeo termina.

 

Lembrei-me, quando o vi pela primeira vez, da atriz Ilana Kaplan, nova febre do mundo digital com a interpretação da personagem Keila Mellman, que dá aulas de etiqueta virtual. No primeiro conteúdo da série no Instagram, ela diz que uma pessoa lhe perguntou se poderia postar uma foto de seus amigos em Fernando de Noronha com uma “champanhota” e a legenda “Eu mereço!”. Ao que Keila respondeu: “Quer postar? Posta. É de bom tom? ‘Nha’. Não é de bom tom”.

 

Sem dúvidas, a suposta comemoração do hospital Vera Cruz não é de bom tom. Mas, além dessa, a nota divulgada pela entidade ao público tampouco é de bom tom. A nota é, na verdade, ridícula, confusa e mascarada. Diz o texto: “Informamos que vídeos privados, sobre uma suposta comemoração, fora do ambiente hospitalar, estão sendo divulgados em redes sociais. Todos os colaboradores envolvidos se esforçam ao extremo para levar ao cidadão de Patos de Minas e cidades adjacentes um atendimento humanizado e eficiente.De qualquer forma, lamentamos a forma de como foi realizada essa divulgação deturpada e reafirmamos nosso compromisso com a ética e empatia com o povo de Patos de Minas e região e, que todas as medidas cabíveis estão sendo tomadas.” Ora, o que todo mundo queria saber permaneceu oculto: o vídeo se trata realmente de pessoas do hospital? Onde ocorre a aglomeração? Qual o motivo do festejo? Por que os protocolos sanitários não foram cumpridos?

 

Pela omissão dessas respostas por parte do hospital, só resta à população imaginar o pior. Internautas pensaram em uma possível comemoração devido aos lucros do hospital particular em meio à pandemia. É como dizem uns versos do compositor uruguaio Jorge Drexler: “A ideia é eternamente nova:/cai a noite e seguimos nos juntando, a/dançar na cova”.

 

Infelizmente, ou felizmente, não conheço ninguém do vídeo — do contrário, eu poderia perguntar o que era aquilo. Com razão, a presidente do Conselho Municipal de Saúde tratou o episódio com repúdio, chamando-o de inaceitável e “muito triste”. O ocorrido remete à festa que o político Arthur Lira organizou para centenas de pessoas sem máscara depois de ganhar as eleições da Câmara, e depois de ter feito todo um discurso a favor da saúde.

 

Ah, Vera Cruz, Vera Cruz! Definitivamente, não foi nada ocasional.

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