A visionária Marieta



[História fictícia.] 

 

Professora Marieta acaba de voltar da escola em que trabalha, em área nobre da cidade. Não fora lá para trabalhar, é claro, mas apenas para pegar um livro que havia deixado em uma gaveta de sua mesa antes de começar a pandemia. O livro se chama Faça você mesmo: sua felicidade depende única e exclusivamente de você. Trata-se de um best-seller de empreendedorismo/autoajuda, com milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. No caminho de regresso, enquanto dirigia seu carro de aproximadamente 70 mil reais, Marieta recordava os bons tempos pré-pandêmicos. 

 

A docente sempre ia com seu carro, sozinha, até a escola. Nunca dera carona a alunos; sempre buscara uma relação tão somente profissional com seus discípulos. Porém, com o ensino remoto (que sua escola particular prontamente adotou), ela se sentiu mais próxima daqueles que agora estão do outro lado da tela. Talvez, por não os ver. Não os vendo, é mais fácil amá-los. 

 

Marieta, pelo cargo que ocupa em sua escola, também fica sabendo de problemas sociais que atingem os estudantes. Ela ouviu muitos relatos de estresse, sintomas depressivos, ansiedade e fadiga. E se compadeceu. Mas, em vez de sugerir ao proprietário de sua escola que contratasse um psicólogo para ajudar os alunos, ela preferiu abordar o empreendedorismo em suas aulas e convidar empreendedores para dar palestras por meio de videoconferência, ensinando insistentemente a todos que a “felicidade depende única e exclusivamente de você”. 

 

Após alguns meses, percebendo que seus esforços pedagógicos não surtiram efeito (nas aulas de licenciatura, ela faltou quando debatiam sobre Paulo Freire), recentemente ela adotou uma nova estratégia: lutar pela volta das aulas presenciais, ainda que isso ocorra de forma híbrida. Para embasar suas reivindicações, ela cita artigos científicos em inglês escritos por pesquisadores de países ricos, que comprovam indiscutivelmente que as escolas não corroboram a transmissão do vírus, e que o retorno presencial pode ser feito de forma completamente segura. 

 

Professora Marieta, contudo, parece desconhecer que parte considerável de seus estudantes, ainda que se trate de uma escola de elite, são de baixa renda (ganham bolsa integral ou parcial). Estes, em tempos normais, pegam um ou dois ônibus desde bairros periféricos até chegarem ao centro da cidade, onde está localizada a instituição de ensino. Marieta nunca andou de ônibus desde o fim de sua pós-graduação, então ela não se lembra mais (ou não quer se lembrar) de que os coletivos sempre andam lotados, transbordando, sufocando. 

 

Seu pouco convívio com gente pobre ou doente faz que ela enxergue toda a realidade segundo a sua visão refinada de mundo, que é iluminada e inovadora. Assim, sua luta pelo direito de ir e vir e pela educação presencial também alcança a política do município, cobrando de vereadores e do prefeito que permitam que as escolas possam abrir as portas o quanto antes. Sua esperança última está no governador de estado, cujo partido muito lhe apetece. 


Marieta é uma visionária. 

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