“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”: breve reflexão teológico-semiótico-política em tempos de pós-verdade
O Evangelho da Liturgia
de hoje contém um versículo construtivamente associado a Jair Bolsonaro.
Trata-se de uma passagem do oitavo capítulo do Evangelho de João. A frase “E
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8, 32) é usada como
instrumento político pelo presidente desde, pelo menos, 3 de maio de 2016.
Nessa data, o então deputado discursou em uma sessão plenária da Câmara em que,
após citar o referido excerto, disse que “obviamente, a verdade é Jesus, é
Cristo”; mas, em seguida, complementou: “trazendo para o nosso paralelo aqui, o
nosso nível dos mortais, [...] eu quero agradecer a manifestação de apoio que
eu tive, [...] em especial do Rio de Janeiro, onde mais de 300 pessoas
compareceram em meu condomínio apoiando as nossas verdades. A verdade nos
libertará!”. Essa tentativa enviesada de contextualização da passagem bíblica
se repetiu dezenas de vezes depois disso, sobretudo em sua campanha
presidencial.
Em artigo publicado no
ano passado na revista Formação@Docente,
do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, eu e a Dra. Sheilla Souza,
professora do Instituto Federal de Minas Gerais, analisamos como significados
foram produzidos por eleitores em relação ao contexto político-eleitoral de
2018. Foi uma época de grande fluxo de compartilhamento de signos produzidos
por terceiros, que muitas vezes eram infectados por desinformação. Redes
sociais, como o Facebook, viram-se obrigadas a criarem mecanismos de
identificação de origem de fonte de publicações, enquanto o WhatsApp passou a
limitar o encaminhamento de mensagens.
Bolsonaro comunga da
política pós-factual, isto é, da cultura política que se fundamenta em
impressões e paixões pessoais em detrimento dos fatos, em uma ótica
manipuladora. Seu compromisso com a verdade, portanto, não é com a verdade que
ele inicialmente indicou em 2016 — “a verdade [que] é Jesus, [que] é Cristo” —,
mas com a que ele afirmou em sequência: “as nossas verdades”. O que lhe é
verdadeiro é as suas convicções, mais nada. E, como milhares de vezes suas
convicções são falsas ou distorcidas (segundo o site Aos Fatos, Bolsonaro
completou 1000 declarações falsas ou distorcidas enquanto presidente em maio de
2020, com apenas 492 dias de mandato), são também inúmeras as notícias falsas
propagadas por seus apoiadores.
Textos são
indissociáveis de seus contextos. No oitavo capítulo do Evangelho de João,
Jesus fala com alguns judeus, que o interrogam. Cristo, então, diz aos que
haviam crido nele: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente
meus discípulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8,
31b-32). Como explica nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, considerada em
diversos países a melhor edição da Sagrada Escritura pelas opções críticas que
orientaram sua tradução e por suas notas, a verdade que Jesus fala é “a expressão
da vontade de Deus a respeito do homem [...]. Ela se opõe portanto ao ‘mundo’
como uma espécie de meio ético: aqueles que pertencem ao ‘mundo’ só podem
odiá-la, aqueles que são ‘da verdade’ obedecem à mensagem de amor que Cristo
nos transmitiu da parte de Deus”. Ou seja, trata-se efetivamente da verdade em
seu sentido semítico, religioso. Os judeus da passagem evangélica
posteriormente perguntam como a verdade pode os libertar, se eles não são escravos.
E Jesus responde que estava se referindo à escravidão do pecado, não à escravidão
física.
Ora, a “verdade” de
Bolsonaro não é a que liberta, mas a que aprisiona. Ao ressignificar o texto
bíblico, ele não o faz com fins intertextuais, literários ou artísticos, senão
manipuladores e oportunistas, rejeitando todo e qualquer contexto. Não há
verdade que corrobora a mentira. E o uso do versículo pelo presidente como
aforismo político e autopromoção em uma interdiscursividade de fachada é cruel,
porém não deixa de ser persuasivo.
No contexto da
pós-verdade em que vivemos, o dono da verdade é Bolsonaro. Sou do time dos que
acreditam que seu pedantismo deve ser interrompido. A mentira é como se fosse um vírus
que “se espalha progressivamente, contamina as famílias, afasta as pessoas e
traz consequências muito graves para a sociedade”, como diz o virologista Átila
Iamarino. Usemos máscara na boca e no nariz, e filtradores de discurso nos
ouvidos.
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