Santo Ailton


A versão on-line do dicionário Aulete traz, em sua segunda acepção para a palavra “santo”: “Diz-se de pessoa canonizada pela Igreja (santo Antônio; santa Rita)”. E, em sua terceira: “Que vive conforme a lei de Deus, cumprindo os deveres religiosos; BONDOSO; VIRTUOSO: Uma santa mulher distribui todos os anos roupas aos pobres”. Ora, tentam enquadrar Evita Perón à primeira definição que aqui apresentei. À última, frei Ailton. Não os mesmos fiéis. Mas, enfim, vali-me do Aulete para comunicar a todos que, depois do que presenciei hoje, creio que, em alguns anos, frei Ailton terá seu nível de “santidade” ascendido.

Não, não saiam pesquisando por aí sobre frei Ailton. Ele será santo (verbo conjugado no futuro); portanto, pouca coisa acharão sobre ele na internet. Ainda. Frei Ailton está vivo: mal passa dos cinquenta anos. Ainda há de viver muito. Seguindo minha linha de raciocínio: o processo de canonização é, em geral, demorado. Antes de levar-se o título de “santo”, vem o de “beato”. Para isso, faz-se necessária a comprovação de um milagre ocorrido com a intercessão do venerável, que, em geral, é um defunto (vale recordar).

Ora, não obstante, depois de hoje, tenho dúvidas acerca de intercessões. Lembro-me que, quando eu era pequeno, minha mãe rezava aos santos reis pedindo-lhes ajuda para que meus pesadelos cessassem. De fato, logo que a vela foi totalmente consumida, a graça foi alcançada. E hoje, eu mesmo acendi uma vela, em novena na casa de tia Rosa. Ela pediu-me que o fizesse. Após a reza, veio o bingo.

Voltando ao frei Ailton (peço-lhes desculpas por meus vaivéns), devo dizer-lhes que é um frei muito bondoso e amoroso. Tem uma fé imensa. Ficou em minha cidade por uns quatro anos, quando foi transferido para outro lugar qualquer, e desde então nada mais sei sobre sua vida. Algumas senhoras de minha terra que beiram oitenta anos afirmam com veemência que o frei é um ser místico. Até hoje, tinha eu meus receios.

Para o bingo, tia Madalena (outra tia minha) trouxe um doce de leite em pedaços. Que colossais pedaços! Eram descomunais. Não se fazem mais doces de leite em pedaços como os de antigamente. Enfim, ela trouxe o doce e tia Rosa desejou-o. Aposentada e morando sozinha, provavelmente esta o guardaria na despensa de sua casa e, de vez em quando, tomaria um pedaço e devorá-lo-ia em poucos instantes.

Comecei a berrar os números. Tia Rosa pediu-me que o fizesse. O primeiro prêmio não foi o doce. Na verdade, resolveram fazê-lo derradeiro. Minha mãe ganhou um pano de prato; alguém que não conheço contraiu uma toalha verde, e um primo meu saiu com um avental de cozinha. Nada disso ocorreu mediante cartela completa; decidiram que esta deveria ser própria do doce.

E meti todas as bolas do bingo no globo; fiéis e infiéis retiraram seus grãos de feijão de cima de seus números. “Bola de número um! Zero, um!”. O jogo começara de novo, mas, desta vez, já cheirando a milagre. Fui percebendo, à medida que eu gritava, que a dona da casa ficava cada vez mais impaciente. Seus olhos avermelhavam-se. Estava desesperada, ambiciosa e determinada. Iria, de uma forma ou de outra, conquistar o doce de leite. Nem que fosse comprando-o após outrem exclamar “Bingo!”.

Fui berrando os números e espiando a cartela pouco cheia de tia Rosa. Parecia até o feijão que era servido em uma escola em que estudei: um grão ali, outro lá longe. Tia Rosa começou a tossir e a tremer. Alguém a perguntou se estava passando mal; foi-lhe respondido velozmente: “Nunca!”. Em verdade, talvez não estivesse bem.

Um cristão gritou: “Estou ‘na boa’!” – nem perguntei se havia alguém “na boa”. E foi de propósito que não o fiz; isso só afobaria a tia, pensei. De fato, afobou-a ainda mais. Pouco tempo depois, outro ser noticiou a todos que estava também “na boa”. Parecia que somente a anfitriã ia “na pior”.

Por fim, já tendo imensas dificuldades em suportar tamanha gula e desesperança, tia Rosa ouviu fortes interjeições: “Frei Ailton! Frei Ailton!”. Reparando um pouco, constatou que saíram de sua boca. Todos os convivas olharam para ela. Calou-se. Corou-se. Tentando aliviar a situação, prossegui: “Bola de número trinta e sete! Três, sete!”. E observei a anfitriã adicionar um grão a sua cartela. “Bola de número oito! Zero, oito!”. Novo feijão.

Ora, todas as bolas seguintes, com exceção de duas (tenho absoluta certeza de que foram apenas duas), levaram à vitória de tia Rosa, sem empate. Não sei como isso ocorreu. Dirão os céticos, após lerem minha humilde crônica, tratar-se de “sorte”, sem a acepção esotérica que a palavra possui. Esotéricos também dirão que foi “sorte”. Enfim, não creio eu ser esse o motivo da conquista de minha tia. De alguma forma, talvez, frei Ailton, seja lá onde ele estava na Terra, foi anunciado por um anjo que uma devota necessitava urgentemente de sua ajuda para, quem sabe, evitar um pecado de ordem maior. Bem, o frei pode ter apenas tido uma intuição e rezado sem muita ciência; mesmo assim, garanto que houve algo místico nesse processo.

Apenas fico devendo argumento àqueles que levantarem a seguinte hipótese: frei Ailton bateu as botas recentemente. Talvez até mesmo hoje. A isso não sei contra-argumentar, pois, como disse, nada mais sei sobre o padre desde que este se mudou para longe. Caso isso venha a confirmar-se, minhas dúvidas acerca de intercessões serão esclarecidas; contudo, acredito que isso não acontecerá. Afinal, frei Ailton é um cinquentão esbelto!

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