A gíria que odeio
Às vezes, no meio da noite, vêm-me à cabeça os versos: “Beleza, mano? Fica com Deus. Quando der, a gente se tromba, firmeza?!” - composição de Rodrigo Augusto de Campos belissimamente interpretada por Elza Soares. Os versos posteriores vêm carregados de gírias: “mil grau”, “mermão”, “pô”. Conheço alguns intelectuais que cultivam ódio áureo por essas palavras. Eu, amante da semiose social, jamais poderia detestar tais expressões. O dicionário Aulete traz, como definição para “gíria”: “Linguagem peculiar que se origina de um grupo social restrito e alcança, pelo uso, outros grupos, tornando-se de uso corrente”. Ora, como não amar a metamorfose da língua? Não obstante, para tudo há limites.
E o limite de minha
atração por gírias está situado a um abismo de distância de “tals”. Também já vi escreverem “talz”. Tais aberrações - “tals” e “talz” - vêm normalmente antecedidas pela conjunção “e”. Exemplo
(história real): recentemente, um colega meu enviou-me a seguinte mensagem:
“Depois, fomos tomar sorvete e tals”. “Virgem Dulcíssima!”, escrevi, “Que
vontade deu-me agora de suicidar-me!”. E meu amigo respondeu: “Kkk”, e, depois,
“Não me diga que você gosta dela. Perdão, pô!”. Enviei: “Não gosto dela, muito
menos de tals”.
No dia seguinte, após meu
colega questionar-me o motivo de eu o haver bloqueado no aplicativo de
mensagens, expliquei-lhe que “tals” é
um atentado à língua. Um descaso à gramática, ao último acordo ortográfico. Ele
balançou seus ombros. Desde então, jamais tive conhecimento do que aconteceu
paralelamente ou posteriormente ao sorvete, uma vez que “tals” e “talz” não
possuem o menor significado possível.
Ah! mas os usuários de
tais formas gráficas da gíria devem conhecer seu emprego “correto”. Não o
significado, senão o emprego. Porque, como acabo de escrever nesta crônica, é
impossível conceber definição plausível para essa maligna aglomeração de
caracteres. Ainda bem que não me atualizo em relação às músicas contemporâneas!
Tenho enorme pressentimento de que já existem letras contendo “tals”, e pessoas cantando-as; e pessoas
dançando, a acompanhá-las.
Triste, apenas resta-me
aguardar final mais triste que minhas lamentações, já previsto pelo Aulete: o de que toda gíria, por sua
própria natureza, alcança vários grupos, tornando-se amplamente usual na
sociedade. Mas sei me cuidar, tenho meu antidepressivo: minha devoção a São
Desuso.
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