O servo de minha prima


Laura foi uma menina de bom coração para muitos, mas não para todos. Falo acerca de minha prima de primeiro grau, seis anos mais velha que eu. Seu irmão Fernando, três anos mais novo, igualmente. Hoje são “gente grande”, meus primos queridos. Apesar disso, ainda não se foi a época em que brincávamos juntos; o tempo nos possibilitou, na verdade, descobrir novos “brinquedos” e diversões...

Mas a presente crônica metalinguística apresentará uma reflexão a qual tem sua gênese em nosso tempo de moleques. Recordo-me bem: eu amava visitá-los; fui por meus tios – seus pais –, sempre tratado com muita hospitalidade. Todavia, tenho a impressão de que a Laura nunca bastou os carinhos dos genitores. Por tal motivo, recorria aos serviços do irmão.

Era uma comédia trágica. Laura subia em cima de uma cadeirinha e chamava, com voz soberana: “Fernando!” – e este vinha. “Quer ser meu escravo?” – e o pequeno sempre respondia positivamente; não tinha outra opção senão essa, já que, se negasse servir à irmã, esta lhe esbofetearia fortemente.

E, assim, Fernando fazia-se escravo de Laura. E Laura, por sua vez, fazia-se senhora cruel de Fernando: a cada cinco minutos, pedia ao menino que lhe trouxesse algo: balas, chicletes, tarecos. Um copo d’água. Dessa forma, o que começava cedo terminava só à noite. E minha prima enxergava nisso tudo uma grande brincadeira; meu primo, coitado, era pequeno demais para rebelar-se contra o status quo. Quanto a mim, confesso que normalmente ficava meio alheio. Contudo, em dias quentes, sinhá Laura pedia ao submisso que me abanasse um pouco, às vezes.

Hoje me lembro dessa memória com certo fascínio e saudade. Mas, a dar continuidade à crônica, devo apresentar aqui outro personagem real: meu ex-professor de história Carlos Roberto. Um homem de elevado conhecimento e de interessante repertório cultural. Sempre que comentava algo relativo à escravidão, gostava de valer-se do vocábulo “escravizado”. Havia motivo, pois. E havia argumento. E este me convenceu, e, desde então, tenho me valido também desse vocábulo em muitas situações nas quais, antes, eu usava “escravo”.

Ora, o dicionário Aulete define “escravo” da seguinte maneira (a primeira entre as acepções): “Diz-se de pessoa, ou grupo, ou povo que é considerado propriedade e se acha sob o domínio e na dependência de um senhor, seja este um indivíduo, uma instituição, uma nação etc.”. Já quanto à palavra “escravizado”, o significado, pelo mesmo dicionário, é este: “Que se escravizou, sofreu escravização”.

Note-se, Carlos Roberto defendia: nenhum homem nasce escravo. Torna-se escravo. Logo, escrever ou dizer “escravizado” implica recordar-se disso; ao menos em teoria. Creio eu que muitos outros historiadores também pensam assim. No município de Ibiá, em Minas Gerais, o escravizado mais famoso chamou-se Ambrósio.

Esclareço, não acredito que o uso de “escravo”, nesse sentido, seja equivocado. Mas não posso negar minha fé: não existem sinônimos perfeitos; logo, devo doutrinar o maior número possível de pessoas acerca desse “dogma”. E quanto a meu primo Fernando, em verdade, penso que deveria recair sobre ele o termo “servo”; mas, como até agora nada falei a respeito de tal vocábulo, declaro encerrada a crônica.

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