Sem relevo
Há quem tenha pavor enorme
por idiossincrasias. Não tenho. Em verdade, creio que estas contribuem para
a formação de nossa identidade, e, destarte, é nosso direito escolher aquelas mais
aprazíveis – reitero: é direito, não dever. Há, também, outras formas de
edificar o próprio ser, muitas de modo singular: construir uma rotina
interessante, ou simplesmente não ter uma; possuir um gosto musical próprio;
adquirir um repertório literário que tem como essência a preferência pessoal;
escrever.
Não obstante, creio eu que
certa coisa, sem dúvida, é uma pedra angular da identidade que uma pessoa possa
ter: o vocabulário pessoal. Como canta Gal Costa: “Se Deus é pai, é a voz a
minha mãe”. Uma atenção especial dou às interjeições. Minhas preferidas
envolvem o cristianismo: “Santa Madre!”, “Mater
Dei!”, “Santa cruz!”, “Virgem mãe!”. De igual forma, valorizo os “palavrões
de seu”. Chamo de “palavrões de seu” aqueles contidos em um subconjunto do conjunto
de palavrões o qual não possui intercessão com o conjunto de interjeições,
valendo-me de uma explicação matemática.
Exemplos: gosto muito de
chamar um ser humano ou outro de “seu desgraçado”, “seu estúpido” ou “seu
desgramado”. Ah! Também muito me apetece o xingamento “sua baranga”. Aqui,
observa-se que os “palavrões de seu” também podem ser utilizados valendo-se de
“sua”. Mas a forma de insulto que mais amo é esta: “sem-relevo”.
Em um tenebroso dia do ano
passado, enquanto ocorriam as eleições presidenciais, eu estava a escrever
qualquer coisa e pesquisei no dicionário Aurélio
a definição do vocábulo “medíocre”. E, em sua acepção segunda, achei “sem
relevo”. Apaixonei-me. Deitei-me em minha cama e imaginei-me chamando algumas
pessoas por aí – à época, eleitores – de “sem-relevo”. Fazer isso na vida real
seria libertador! Uma pena eu ser tão tímido! Ou educado. Decidi então, agora,
escrever a presente crônica, por meio da qual, prometo, falarei mal de alguns
indivíduos. Quem sabe você não seja um deles.
Ora, imagine estar com
muita fome. Talvez você de fato esteja nessa situação. À sua frente, são
colocados dois pratos: um contém certo bolo cujo glacê é lindo, mas que se sabe
que seu interior é asqueroso; sobre o outro está um bolo feio, porém, sabe-se,
é apetecível ao paladar. É-lhe permitido escolher somente um, ou nenhum. Após
refletir, escolheria nenhum? Escolheria o exteriormente bonitinho?
Se a resposta a uma dessas
perguntas for sim, você é por mim considerado “bobo”. Alto lá! Eu não disse ainda
“sem-relevo”. Se ficar em dúvida sobre o que fazer, e, por fim, sem saber o
motivo real, comer determinado bolo ou ficar sem comer, você, sim, é um
“sem-relevo”! Explico melhor: não tem relevo quem é morno, quem não serve nem
ao bem nem ao mal, quem não tem história, quem não tem identidade.
Ora, pode não ter parecido
para alguns, mas já falei mal de uma miríade de eleitores nestes parágrafos.
Foi, de fato, lamentável ter sido concebida uma disputa extremamente
polarizada. Quem se enquadrava mais ao centro da campanha política pôde ter
tido dificuldades em escolher o presidenciável. Contudo, entendo que o pior
eleitor foi aquele que não soube em quem votar e acabou digitando qualquer
coisa na urna eletrônica. Sem relevos!
Por fim, peço-lhes
encarecidamente: tomem lado. Não sejam mornos. É como diz a música “É preciso
saber viver”: “Se o bem e o mal existem você pode escolher”. Pois escolham. Se
preferirem ser do mal (ou do bem), possivelmente insultar-lhes-ei, mas,
garanto, não será com “sem-relevo”. Tenham história, tenham identidade. Tenham
relevo.
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