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Prova

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Ontem me senti bastante envergonhado. Explico: ultimamente tenho dedicado os meus dias, quase todos, ao estudo para um concurso público de nível médio. Na verdade, venho me preparando para ele desde bem antes de sair o edital; é algo ao qual realmente estou dedicado. As matérias que preciso estudar não são muitas. A maioria delas, já as havia estudado com mais ou menos afinco, por serem recorrentes em concursos e por eu estar estudando para outro concurso — que as cobra —, de nível superior, há bom tempo. Uma matéria exigida pelo exame de nível médio, porém, não consta no edital desse outro concurso, de modo que eu ainda não havia me preparado para ela. Acontece que deixei para estudá-la no final. A razão disso foi a seguinte: trata-se de um conhecimento com que posso certamente dizer que tenho intimidade, por me acompanhar desde a infância. Dessa forma, não é algo que eu precisaria estudar para a prova desde o início. Falo da matemática. A matemática me acompanha desde pequeno. Chegue

Comentário sobre Fl 1,23-24

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“Sinto-me atraído para os dois lados: tenho o desejo de partir, para estar com Cristo — o que para mim seria de longe o melhor —, mas para vós é mais necessário que eu continue minha vida neste mundo.” (Fl 1,23-24) Já não mais compartilho da dúvida de Paulo, que tanto me acossou na juventude, quando me sentia útil à comunidade terrena e herdeiro do paraíso celeste. Os anos pecaminosos que se seguiram trouxeram-me trevas, mas também sabedoria: sei que sou inútil a tudo e a todos, e que não mereço qualquer recompensa. Ao mesmo tempo, não considero justo receber nenhum castigo. Fiz muitas vezes o mal, mas nenhum mal que fiz foi muito. Reconheço que é certo que eu seja advertido, ou mesmo que eu receba alguma repreensão. Mas não devo ser castigado. Se a mim recai algum grave acusamento, que me seja dado o direito de defesa. Não tenho, no momento, nenhum argumento que me escuse de algo ruim que fiz. Contudo, no além, terei a eternidade e a plena consciência, e com tempo e luz infinitos cons

Compilação de pensamentos sobre aquela noite

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(1) Citei a frase “Minha pátria são os amigos”, mas não me lembrava do autor dela. Agora me lembro: é Alfredo Bryce Echenique. (2) Cantei “Você me abre seus braços / E a gente faz um país”. Ele abriu os seus braços e a gente fez um país. (3) Minha pátria são os meus amigos e minha pátria me encanta. Mas também me encanta o estrangeiro. (4) Às vezes a gente faz o estrangeiro abrindo as bocas. (5) Às vezes, com braços e bocas abertos, a gente faz o mundo.

Comentário sobre a beleza de João

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João é o homem mais bonito desta universidade. Mais que isso, é dela a pessoa mais bonita. Mais que isso, é dela o ser vivo mais bonito. Sim, sei que é difícil, senão impossível, comparar a beleza de um homem, de uma mulher e de um jacarandá. Ainda assim, creio que João é o mais bonito de todos, ou de tudo. Na minha lista de seres vivos mais belos da universidade, ele aparece em primeiro lugar. Em segundo, vem um pinheiro velho, meio tombado. Em terceiro, um ipê-roxo. Só em sexto ou sétimo lugar é que está uma outra pessoa: uma professora do Instituto de Biologia. Sei que minha lista é limitada, pois não conheço nem metade dos seres vivos da universidade. Além disso, a esmagadora maioria deles é tão minúscula que é invisível a olho nu. Mas que me importa um olho nu? Em matéria de nudez, só me importa João.

Miniconto

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Três dias após sua visita, em que dormiu em minha sala, pus, na máquina de lavar, a roupa de cama usada por ele, junto a roupa de cama usada por mim. Quando retirei toda a roupa, que já não mais cheirava a ele ou a mim, mas a amaciante, notei que havia, em diversas peças, fios de cabelo. Meu cabelo é castanho. O dele, loiro. Na fronha em que repousei a cabeça ao longo da semana, havia um fio loiro. Na coberta que o aqueceu naquela noite fria, um fio castanho. Na manhã seguinte, quando o encontrei, recomendei que tomássemos cuidado com nossa iminente calvície.

E-mail de uma poeta a um leitor

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Agradeço o seu e-mail a respeito do último livro que publiquei, Poemas cotidianos . Em seu texto, você diz que se sentiu identificado com o personagem amado pelo eu lírico de alguns poemas de amor que compõem a obra; em especial, dos poemas das páginas 25 e 26. Por fim, você elogia a mim e ao meu livro, comparando-me a alguns dos meus poetas prediletos e comparando Poemas cotidianos a alguns dos meus livros preferidos. Muito obrigada. De fato, querido Valério, eu pensava em você quando escrevi os poemas que você menciona. Não tenho, de forma alguma, o talento dos escritores que você aponta, mas reconheço que os poemas que escrevi foram bem escritos. Talvez, a beleza que os caracteriza se deva mais à matéria de inspiração (você) que à habilidade desta autora. Drummond, Szymborska, Pessoa — os poetas que você menciona — foram sublimes. Mas nenhum deles falou de você. Isso me torna uma poeta que, embora não tenha escrito o mais belo, falou do mais belo. Esse é o único diferencial que eu

Rabisco de intimidade

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Olho você. Seu cabelo meio amarrado, meio solto, seus olhos escuros, seu sorriso raro. Você, à mesa, na lanchonete, comendo um sanduíche. “Sou um homem comum…” — começo a cantarolar, quase que só em pensamento, uma canção de Caetano. Vem-me à mente um conselho célebre de Darlene, personagem do seriado Pé na cova : “Olha através, Abigail. Pra aquilo que não pode ser, a gente olha através”. Olho para um lado. Olho para outro. Olho você. Não há através em você, não há translucidez em você. Há opacidade, sombra, mistério, parede, porta. Você. Você olha para mim. Disfarço o olhar. Finjo limpar as lentes dos meus óculos, gesto habitual. Gosto de tê-las bem limpas, para olhar através. Mas você não é lente, não é vidro, não é acrílico. Você é colírio: lubrifica os olhos, mas embaça a vista. Você é aquilo que não pode ser, o proibido. “Olha através…” Levanto-me da cadeira e vou até o caixa. Olho para um espelho na parede, que reflete você. Manipulo o conselho, trocando os sentidos, adequando-o