Prova

Ontem me senti bastante envergonhado. Explico: ultimamente tenho dedicado os meus dias, quase todos, ao estudo para um concurso público de nível médio. Na verdade, venho me preparando para ele desde bem antes de sair o edital; é algo ao qual realmente estou dedicado. As matérias que preciso estudar não são muitas. A maioria delas, já as havia estudado com mais ou menos afinco, por serem recorrentes em concursos e por eu estar estudando para outro concurso — que as cobra —, de nível superior, há bom tempo. Uma matéria exigida pelo exame de nível médio, porém, não consta no edital desse outro concurso, de modo que eu ainda não havia me preparado para ela.

Acontece que deixei para estudá-la no final. A razão disso foi a seguinte: trata-se de um conhecimento com que posso certamente dizer que tenho intimidade, por me acompanhar desde a infância. Dessa forma, não é algo que eu precisaria estudar para a prova desde o início. Falo da matemática. A matemática me acompanha desde pequeno. Cheguei ao primeiro ano do ensino fundamental já sabendo fazer contas básicas. Alguns anos depois, no ensino fundamental II, ganhei medalha de bronze em olimpíada de matemática. Isso me permitiu fazer um curso de aprofundamento da matéria com alunos medalhistas de outras escolas, por meio do qual fiquei conhecendo muitos dos que viriam ser, mais tarde, meus colegas de ensino médio em instituto federal. A experiência de ganhar medalhas e fazer cursos se repetiu em anos seguintes.

No nono ano do ensino fundamental, cheguei a desejar fazer graduação em matemática. Aí houve certa influência familiar: meu tio Geraldo, mais conhecido como Arvelos, é professor de matemática em centro universitário. Tendente a abraçar os números, escolhi fazer curso técnico de eletrotécnica nesse instituto federal (na época, ele ofertava apenas dois cursos técnicos, eletrotécnica e logística, dos quais, obrigatoriamente, eu deveria eleger um). Quando entrei no ensino médio, logo fiz grande amizade com Eleide, minha professora de matemática. Com ela, participei de um projeto de extensão chamado Laboratório Sustentável de Matemática, que combinava essa disciplina com ludicidade e reciclagem.

Ao longo do ensino médio, contudo, fui, aos poucos, preferindo as letras aos números e às formas geométricas. Quando digo letras, não falo de incógnitas e de variáveis, mas de palavras. Sempre gostei de ler e de escrever. Mas fui gostando disso cada vez mais, enquanto os cálculos foram perdendo o sabor. Hoje consigo elaborar uma teoria para explicar essa mudança de interesse: somente com as palavras é que eu conseguia criar. A matemática continuava interessante, mas eu me via muito passivo diante dela: eu era capaz de reproduzi-la, mas não de modificá-la ou de, por meio dela, gestar algo novo. Combinando palavras, no entanto, eu dava vida a um miniconto, a uma crônica, a um poema. Nesse contexto, vi que eu não queria mais fazer, na faculdade, matemática nem qualquer outro curso de exatas. Concluí, assim, que eu era um ser de humanas.

Minha paixão por textos continua até hoje, mais forte do que nunca, embora eu não tenha escolhido cursar letras ou estudos literários, mas geografia. Tenho lido bastante. No último final de semana, li dois livros e dois contos — todos excelentes. No sábado, durante o dia, li o livro Entrevista com o professor, de Lívio Soares de Medeiros, e os contos “De quanta terra precisa o homem?”, de Liev Tolstói, e “O imortal”, de Machado de Assis; à noite, estudei para o concurso. No domingo, durante o dia, li o livro Assassinato no campo de golfe, de Agatha Christie; à noite, estudei para o concurso, mais uma vez.

Enfim elucido o que me causou tanta vergonha. Ontem decidi fazer algumas questões de matemática, a matéria que faltava ser estudada para o concurso. Pensei que não se trataria de mais que uma simples certificação de que eu estava apto para fazer a prova. Afinal, as questões não seriam de nível superior e, além disso, a banca organizadora do exame não costuma ser muito exigente na matéria. Mas qual não foi a minha surpresa ao constatar que meu raciocínio matemático estava lentíssimo! Por diversas vezes, cometi erros bobos ao fazer contas de multiplicação. Não me lembrei do processo para calcular o mínimo múltiplo comum e — o que mais me espantou — da fórmula para resolver equações de segundo grau. À medida que eu ia fazendo (ou tentando fazer) as questões, mais fui me dando conta de esquecimentos, quase infinitos. Para onde fugira meu conhecimento matemático, depois que saí do ensino médio?

É natural que, sem a prática, nós nos esqueçamos do que outrora aprendemos. Tenho plena ciência de que quase tudo o que aprendi de física, de química ou de eletrotécnica, por exemplo, evaporou-se. Esta perda, em específico, nunca me deixou triste. Sendo bem honesto comigo, posso dizer que esses são saberes que não fiz questão de reter. Mas a perda da matemática me afetou. Não imaginei que teria me esquecido dela, por ter sido ela tão especial para mim. Sem embargo, ela se foi como qualquer outro saber de que não fiz uso.

Certa vez, li sobre uma alfabetizadora que dizia ter as letras, mas não os números — acho que era uma personagem de Torto arado, de Itamar Vieira Junior, mas posso estar enganado (emprestei o meu exemplar desse livro para alguém, de modo que não o tenho comigo no momento, para conferir). Senti-me como essa professora. Às vezes é difícil percebermos as mudanças pelas quais passamos. Nas férias, quando fui rever os parentes, alguns me disseram que engordei. Não tenho o hábito de subir em balanças, mas o espelho me acusou isso todos os dias. Por que não fui capaz de ouvi-lo? Talvez, a resposta resida justamente na frequência, na repetição. Comumente, o ruído que é sempre ouvido, o cheiro que é sempre sentido passa a ser ignorável. O mais difícil de ver não é o óbvio?

Hoje cedo tomei a decisão de reaprender matemática. Ao menos, o necessário para o concurso. Recordar não é tão trabalhoso; sei que logo conseguirei o que almejo. Mas o caso me provocou reflexões mais profundas. Ontem à noite, quando me deitei, fiquei pensando que, nos últimos anos, também deixei de lado coisas que amo fazer. Uma delas é escrever crônicas. Demorei a me lembrar de quando foi a última vez que escrevi uma. Será que eu ainda era capaz de escrever uma crônica? Ou será que eu também havia perdido a capacidade de transformar o cotidiano em literatura?

Assim pensando, hoje à noite, ainda aflito, com muita cautela e receio, pus-me à prova. 



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