Comentário sobre Fl 1,23-24

“Sinto-me atraído para os dois lados: tenho o desejo de partir, para estar com Cristo — o que para mim seria de longe o melhor —, mas para vós é mais necessário que eu continue minha vida neste mundo.” (Fl 1,23-24)

Já não mais compartilho da dúvida de Paulo, que tanto me acossou na juventude, quando me sentia útil à comunidade terrena e herdeiro do paraíso celeste. Os anos pecaminosos que se seguiram trouxeram-me trevas, mas também sabedoria: sei que sou inútil a tudo e a todos, e que não mereço qualquer recompensa. Ao mesmo tempo, não considero justo receber nenhum castigo. Fiz muitas vezes o mal, mas nenhum mal que fiz foi muito. Reconheço que é certo que eu seja advertido, ou mesmo que eu receba alguma repreensão. Mas não devo ser castigado. Se a mim recai algum grave acusamento, que me seja dado o direito de defesa. Não tenho, no momento, nenhum argumento que me escuse de algo ruim que fiz. Contudo, no além, terei a eternidade e a plena consciência, e com tempo e luz infinitos conseguirei, imagino, alcançar qualquer palavra ou conclusão.

É claro que quero ir para o paraíso, se o paraíso existir. Se o paraíso são céus, se são aruandas, se são parnasos, se são olimpos, não sei, mas o quero todo. Se o paraíso é aqui, se está aqui, tampouco sei, mas, neste caso, não mais o anseio. Nunca o achei porque nunca o procurei? nunca o encontrei porque nunca o não procurei? — não importa… não importa mais. Não tenho mais idade para aproveitá-lo, caso o paraíso seja terreno. E o que de terreno mais me parece assemelhar-se ao máximo gozo, nunca vi um santo consumi-lo, ao menos não sem arrependimento.

Aos filipenses e a Paulo digo que me sinto repelido para os dois lados: tenho o antidesejo de ficar, para estar com o que não me circunda — o que pode ser tanto o melhor quanto o pior, a depender do julgamento dos deuses —, e tenho o antidesejo de ir, pois ir significa ter de se fazer criança de novo e conhecer todo um outro universo com diferentes leis, o que, só de pensar, inspira-me larga preguiça.

Por questões letárgicas, prefiro, então, o viver aqui, ainda que isso represente a opção pelo fracasso, pelo limite. Aqui há sofrimento, mas é um sofrimento a que já me habituei. Aqui há demônios, mas são demônios que a sociedade pode trocar de tempos em tempos. Há ignorância, mas também leitura e escrita. Há cansaço, mas também esperança e sonho. E isso me basta para viver e para afastar a dúvida.

 Dormindo, Com Sono, Homem, Asiática

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