Rabisco de intimidade

Olho você. Seu cabelo meio amarrado, meio solto, seus olhos escuros, seu sorriso raro. Você, à mesa, na lanchonete, comendo um sanduíche. “Sou um homem comum…” — começo a cantarolar, quase que só em pensamento, uma canção de Caetano. Vem-me à mente um conselho célebre de Darlene, personagem do seriado Pé na cova: “Olha através, Abigail. Pra aquilo que não pode ser, a gente olha através”. Olho para um lado. Olho para outro. Olho você. Não há através em você, não há translucidez em você. Há opacidade, sombra, mistério, parede, porta. Você.

Você olha para mim. Disfarço o olhar. Finjo limpar as lentes dos meus óculos, gesto habitual. Gosto de tê-las bem limpas, para olhar através. Mas você não é lente, não é vidro, não é acrílico. Você é colírio: lubrifica os olhos, mas embaça a vista. Você é aquilo que não pode ser, o proibido. “Olha através…” Levanto-me da cadeira e vou até o caixa. Olho para um espelho na parede, que reflete você. Manipulo o conselho, trocando os sentidos, adequando-o não à língua, mas ao paladar: “Olha por intermédio, Teófilo. Pra aquilo que não pode ser, a gente olha por intermédio”.



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