Aos evangélicos indecisos

Tenho muitos amigos evangélicos. Não sou evangélico. Isto não me impede de ter uma relação respeitosa com o protestantismo, ou de escutar com atenção os bons exemplos de líderes com raízes protestantes. Posso começar citando o irmão Roger, fundador da comunidade ecumênica de Taizé, na França. Grande cristão, soube promover a paz, o diálogo e o respeito. Era filho de um pastor protestante. Relacionou-se admiravelmente bem com a igreja católica, escrevendo, por exemplo, livros com a madre Teresa de Calcutá. Cito, também, o pastor batista Martin Luther King Jr., imenso defensor dos direitos civis nos Estados Unidos. No Brasil, dou destaque à pastora luterana Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), a qual acompanho há tempos. Ela teve participação muito importante na última Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE), no ano passado, ocasião em que foi muito atacada nas redes sociais por pessoas extremistas e fundamentalistas, recebendo notas de solidariedade de organizações de várias religiões, como da Cáritas Brasileira, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Nestas eleições presidenciais, a maioria dos eleitores evangélicos apertou “22” na urna eletrônica para presidente da República, no último domingo. Essa maioria exerceu o seu poder de voto de forma democrática, o que deve ser respeitado por todos. Não obstante, penso que deva haver, também, evangélicos indecisos, que possivelmente, no primeiro turno, votaram nulo ou em branco, ou que não votaram de modo algum, ou que escolheram um candidato que não foi para o segundo turno, ou, ainda, que escolheram um candidato que foi para o segundo turno, mas sem estarem convencidos desse voto. É para essas pessoas indecisas que eu gostaria de falar.

Entendo que há uma pressão interna em muitos templos para apoiar Bolsonaro. Tenho esse entendimento porque muitos líderes evangélicos brasileiros, como Silas Malafaia e Edir Macedo, apoiam publicamente o atual presidente. Bolsonaro diz, com muita frequência, palavras como “família”, “Deus” e “bons costumes”, que fazem parte da moral protestante. É preciso atenção, porém, na diferença entre o falar e o fazer. Perguntas norteadoras para uma boa averiguação podem ser: Bolsonaro realmente tem uma boa família, ou zela por uma família coerente com os valores que afirma ter? O presidente efetivamente age conforme os preceitos de Deus, em quem diz acreditar? Ele tem mesmo bons costumes, ou os costumes dele são mesmo bons?

Imagino que essas sejam questões importantes de serem analisadas para quem deseja votar de acordo com uma crença religiosa cristã. Eu não voto puramente por convicções religiosas — antes, penso em candidatos com projetos que vão ao encontro das necessidades (e não apenas interesses) da sociedade. Mas o meu voto atual não contradiz minhas convicções, sejam elas religiosas, sejam elas políticas. Eu votei e votarei novamente no ex-presidente Lula, e vou dizer por quê.

Parto do pressuposto de que um político bom alivia o sofrimento das pessoas necessitadas, e um político ruim não alivia. Aliviar o sofrimento das pessoas necessitadas é, também, imperativo básico do cristianismo — mas, muito mais que isso, é também imperativo básico de humanidade. Quando comparamos o que Lula e Bolsonaro fizeram em seus respectivos governos em prol dos mais empobrecidos, não restam, para mim, dúvidas: o primeiro fez muito mais. Há quem argumente que o atual presidente não fez muito por causa da pandemia. Não desconsidero os efeitos da pandemia, mas pergunto: o que Bolsonaro fez para os mais pobres antes da pandemia? Mesmo durante, é importante dizer: o auxílio financeiro de R$600,00 dado à população carente não é mérito do governo federal. Este pretendia que a quantia fosse de apenas R$200,00¹. Foi somente com muita luta da oposição no Congresso Nacional e com a mobilização da sociedade civil que o governo aprovou o valor mais alto, tentando, depois, ficar com todo o crédito. Lula, por outro lado, foi protagonista no combate à miséria e à fome na história recente do país. Em seu primeiro governo, de 2001 a 2005, a pobreza foi diminuída em 19%². Durante todo o seu período como presidente, até dezembro de 2010, a redução foi de 50%³. No atual governo, porém, assistimos a um aumento da miséria e da fome. De 2019 a 2021, houve um acréscimo de 9,6 milhões de pessoas em situação de pobreza⁴. No ano passado, o contingente de pessoas com renda domiciliar per capita de até R$497 mensais atingiu 62,9 milhões de brasileiros, o que representava 29,6% da população total do país⁴.

Outro pressuposto de que parto é que um político bom é ético e respeitoso — e que um político ruim é o oposto. Quanto a isso, podemos recordar algumas declarações de Bolsonaro, como “Eu sou favorável à tortura”, “O erro da ditadura foi torturar e não matar” e “Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção, desde que este Congresso dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu entender está muito próximo”; ou falas como “Eu jamais ia estuprar você porque você não merece” e “Como eu estava solteiro na época, esse dinheiro do auxílio-moradia eu usava para comer gente”⁵. Não nos esqueçamos, também, da indiferença do atual presidente para com as vítimas de covid-19. Lula também coleciona falas e declarações deploráveis, como “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não? Qual é a lógica?”⁶. Ainda assim, no conjunto, comparando um e outro, Lula sai melhor.

Há ainda, é claro, muitos outros critérios que utilizo para a escolha de meu voto. Mas os dois acima ocupam, para mim, posição privilegiada, e tenho certeza de que são também importantes para os evangélicos com uma consciência livre e crítica. Sei que muitos protestantes votarão em Bolsonaro por considerá-lo “a favor da vida”. Mas será que ele é mesmo? Até que ponto? Não olhemos apenas para fetos, mas também para doentes, famílias enlutadas, vítimas da violência policial e da covid-19. É verdade que Lula, em abril, disse que o aborto “deveria ser transformado numa questão de saúde pública e todo mundo ter direito”⁷, o que mexeu com muitos evangélicos. Ao mesmo tempo, essa declaração isolada não significa que em seu governo mudará em alguma coisa a lei, se eleito — é, aliás, muito improvável que mude. Tal processo dependeria, também, do Congresso Nacional, e traria muito desgaste político ao petista, pois não iria ao encontro do que pensa a maioria da sociedade brasileira. Nesse sentido, vejo como compatível apoiar Lula e ser contra a descriminalização do aborto, levando em conta, também, que o candidato não faz deste tópico estandarte de sua campanha.

Lula não é o candidato ideal. Tampouco Bolsonaro é. De todo. Mas são os candidatos que temos. Não são as únicas opções do eleitor — há ainda a possibilidade de anular o voto, votar em branco ou, simplesmente, não ir votar. A minha escolha é votar em Lula. E tenho razões para tanto. Minha chave é que não voto somente por convicções, mas também por fatos. Convicções, cada um tem as suas. Fatos não são de ninguém: estão aí, na mesa. No caso da atual disputa presidencial, os fatos são principalmente o saldo que cada político entregou no final de um mandato. Nesse quesito, ao contrário do que dizem alguns, o passado de Lula não o condena — antes, o favorece. O de Bolsonaro, porém, o coloca numa cilada. Não sei se ele acabará preso se não for eleito. Acho que não faltam motivos para que receba tal fim. Recentemente, um tribunal internacional condenou o presidente por crime contra a humanidade e violação de direitos humanos — uma condenação, porém, simbólica, sem efeitos jurídicos⁸. Sabemos que a Justiça brasileira, contudo, não é o melhor exemplo do mundo.

Para concluir: gostaria que este meu texto fosse lido com o mesmo nível de civilidade com que ora o escrevo. Para discordar não é preciso atacar. Não serei convencido a mudar de lado a esta altura do campeonato, assim como jamais eu conseguiria mudar de lado um apoiador convicto de Bolsonaro, neste momento. Então faço um apelo final pelo respeito e pela civilidade. E isto é também, lembro, um critério aplicável às candidaturas. Qual candidato é mais respeitoso, mais civilizado? Votemos com sabedoria, e apoiados na verdade.


Referências:

¹ <http://glo.bo/3yyUuvB>.
² <https://bit.ly/3UVM5f8>.
³ <https://bit.ly/3dZ4YwY>.
⁴ <https://bit.ly/3RygMnN>.
⁵ <https://bit.ly/2QOYWCg>.
⁶ <https://bit.ly/3UXhvli>.
⁷ <http://glo.bo/3yyVe3R>.
⁸ <http://glo.bo/3CqBEZQ>.

 

 

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