Carimbo

 

 

Minha autoescola já havia me advertido: para transferir o processo de habilitação de um estado para outro, paciência é pré-requisito. No momento da advertência, já atinei que a tal “paciência” não dizia respeito propriamente à virtude, mas, sim, à lida com burocracia. Não tive escolha: eu precisava transferir meu processo de Minas Gerais para São Paulo. O jeito era enfrentar o aparato inútil das papeladas.

Fui ao Poupatempo, local que combina uma miríade de serviços oferecidos por diferentes autarquias. O nome sugere agilidade, eficiência. Assim que entrei, porém, vi que o tempo que se buscava poupar não era bem o meu, mas o dos funcionários. Entre eles, era um corre-corre que não acabava mais. Quando eu perguntava a um deles o que eu deveria fazer, aonde eu deveria ir, eu era simplesmente remetido a outro. “Vá até ali e faça a mesma pergunta que você me fez, que saberão te responder.” Chegando lá, a resposta era: “Pergunte naquele balcão”.

A verdade é que ninguém parecia saber muito bem o que eu deveria fazer. Muito menos eu. Enfim, com muito custo, e passado muito tempo, fui atendido. Depois de apresentar meus documentos, fui orientado a escrever, de próprio punho, uma extensa solicitação formal requerendo a transferência do meu processo, descrevendo tudo o que já fiz em Minas (aulas teóricas e práticas, exames etc.) e tudo o que faltava agora fazer em São Paulo. Assim escrevi.

Foi-me dito que em quinze dias úteis, no máximo, a transferência estaria concluída. Findo esse período, entrei em contato com minha autoescola, que constatou, no sistema do Detran-SP, que nada havia ainda de mim. Esperei mais uma semana. Nada. Minha autoescola me recomendou que eu voltasse ao Poupatempo para ver o que estava acontecendo. “Será que informei algum dado errado?”, pensei.

Voltei ao local. Desta vez, meu atendimento veio mais rápido, pois eu já conseguia me orientar naquele ambiente estranho. “Um momento. Vou verificar por que o seu processo não foi para a frente” — disse-me a atendente. Passados alguns minutos, recebi como explicação: “Queira nos desculpar, mas quem te atendeu da primeira vez se esqueceu de aplicar a você o ditado. Vou aplicá-lo agora”. “Que ditado?” — perguntei. “Um ditado para comprovar que você é alfabetizado.”

Tive de escrever num papel algo tão simples como “Não tenho o direito de colocar a vida e a segurança das outras pessoas em risco”, que foi carimbado em seguida. E só. Foi então que entendi o porquê da “paciência” de que me falou a autoescola. De fato, nesse momento, precisei de muita paciência para não explodir. Seja minha cabeça, seja o Poupatempo, seja a Via Láctea.

Ora, na primeira vez, escrevi uma solicitação extensa à mão. “Será que ela não bastava para comprovar que sou alfabetizado?”, pensei. Mas reservei a pergunta aos meus botões. Eu sabia bem que, se a dissesse à atendente, a resposta seria esta: “É que na declaração não tem o meu carimbo”.


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Prova

Miniconto

Compilação de pensamentos sobre aquela noite