Onde fica a casa do meu conhecido?
Na parte da manhã, em sala de aula, eu e os meus colegas de uma disciplina chamada Escola e Cultura apresentamos trabalhos visuais que havíamos feito, frutos de uma atividade de produção de “minutos Lumière”. Um “minuto Lumière”, tal como nos foi ensinado, refere-se a um minivídeo sem som e sem cortes e com a câmera parada. Algo como um microconto visual de uma cena.
Fomos orientados a
filmar a casa de um amigo, ou algo que ficasse entre a sua casa e a nossa,
inspirados no filme iraniano Onde fica a
casa do meu amigo?, de 1987, escrito e dirigido por Abbas Kiarostami. A maioria
da turma registrou efetivamente casas, construções, prédios. Outra parte, em
que me incluo, preferiu brincar com a polissemia da palavra “casa” e filmar não
locais de residência, mas de encontro, de existência. Foi assim que gravei meu
amigo Arthur, sem camisa, olhar a sacada. Pensei que o corpo fosse nada menos
que nossa primeira morada.
A verdade é que tive de
sair da aula um pouco mais cedo que o seu término, pois eu deveria pegar um
ônibus a São Paulo. Quando já estava no ônibus rumo à capital, lembrei-me de
que um internauta, poucos dias antes, recomendou-me conhecer a Casa Mário de
Andrade, local em que viveu e morreu o famoso poeta. A recomendação se deu
quando compartilhei, em um grupo virtual de literatura e cinema, o meu poema preferido,
de todos: “Descobrimento”, de Mário.
A primeira vez que tive
contato com o texto — e com o autor — foi no ensino fundamental, em um livro de
geografia. Lembro-me, como se fosse hoje, de a professora lê-lo em voz alta
para a turma. Também recordo que o mesmo livro trazia excertos da letra de “Cidadão”,
canção antológica de Lúcio Barbosa. “Descobrimento” e “Cidadão” falam de um
homem do Norte, talvez do mesmo homem, mas também falam de mim.
Fato é que, depois do
ensino fundamental, li muito pouco de Mário de Andrade. Tenho um livro dele, li
alguns textos, mas nada que o fizesse meu íntimo. Deveria eu entrar em seu
recinto, se nem o conheço direito? Pesquisando no celular, vi que sua casa não
era longe de onde o ônibus me deixaria; aliás, era próxima a ponto de se poder
ir a pé. E assim fiz.
Fui recepcionado por um
jovem, que era educador da casa. Ele me explicou que havia duas modalidades de
visita: em uma, eu poderia explorar os aposentos por minha conta, e ele ficaria
ao meu lado em caso de dúvidas; em outra, ele me guiaria pela casa, contando a
história de cada canto. Pensei em explicar-lhe que eu não era íntimo do Mário,
que nunca frequentara sua casa antes, que ele era apenas meu conhecido, que sua
casa nem me serviria para a produção de um “minuto Lumière” da atividade de mais
cedo, porque ele não era meu amigo. Mas recordei que o jovem não era sequer meu
conhecido, e que não era conveniente tamanha explanação em início de conversa.
Então respondi, simplesmente, que gostaria da visita guiada, por favor.
Ele me levou a cada
cômodo. Ali, um velho piano de castiçais; lá, uma estante de livros; aqui, o
telefone da família; acolá, fotos de Mário. Em tudo, uma história. Imaginei que
veria a bendita escrivaninha à qual ele se encontrava abancado, em sua casa na rua
Lopes de Chaves, quando sentiu um friúme por dentro. Ou mesmo o seu livro
palerma que olhava para ele. Mas não achei nenhuma escrivaninha e, dos livros
que vi, nenhum me pareceu convincentemente palerma.
Todavia, quando menos esperava, encontrei o friúme. Foi quando, de fora da casa, já quase indo embora, fitei-a novamente. Fiquei parado por um minuto, com os olhos fixos na construção. “Tu tá aí admirado ou tá querendo roubar?” — quase me disse o vigia da casa, que me encarava desconfiado. Fui distanciando-me lentamente, seguindo meu rumo. Mas confesso que ainda voltei o olhar para trás uma última vez, despedindo-me da casa do meu mais novo amigo.
Comentários
Postar um comentário