O direito ao assento

 



Retornando à cadeira em que eu estava sentado três minutos atrás na lanchonete, acho-a ocupada por outra pessoa. Olhando ao redor, noto que todas as outras mesas já estão ocupadas. “Com licença, eu estava sentado aqui. Apenas fui ao banheiro.” Escuto como resposta: “Moço, não há nada seu aqui, ‘marcando’ este lugar”. Era verdade. Mas o que eu poderia ter deixado sobre aquela cadeira ou sobre aquela mesa para que se tornassem temporariamente “minhas”, se eu não levava nada nas mãos? Meus óculos? Meus sapatos?

 

Descontente, mas preferindo não discutir com o homem que me tomou aquele assento que não era, comprovadamente, meu, saí da lanchonete e procurei outro lugar para me acomodar e comer alguma coisa. Fui parar em uma praça de alimentação, proporcionalmente menos cheia e com mais possibilidades de saciar-me e de eleger um assento para reservar-me o direito de usufruí-lo. Já sentado, enquanto eu comia um sanduíche, pensei por um momento sobre o acontecimento da lanchonete.

 

Se aquela praça fosse outra, em outro tempo, talvez eu pudesse debater com as pessoas ali presentes sobre o que confere aos cidadãos o direito ao assento. Nas ágoras gregas do passado, homens filosofavam enquanto ocupavam, imagino eu, assentos. Aristóteles, em uma dessas ocasiões, disse que “o que não está em nenhum lugar não existe”. Ora, no mundo de hoje, parece-me que sua frase seria mais bem dita assim: o que não está em nenhum lugar torna-o disponível. Mas será que Aristóteles e eu falamos do mesmo tipo de lugar?

 

A geógrafa Maria Adélia de Souza, de quem sou fã, disse recentemente em uma aula magna virtual que o nome de seu próximo livro será O direito ao lugar, ou simplesmente Direito ao lugar, sem o artigo “o” — não me recordo bem. Mas sei que a definição de lugar, para ela, não é a mesma que utilizo nesta crônica. O que aqui significa meramente uma cadeira e uma mesa, uma definição bastante simples e duplamente cômoda, para ela, significa o que o professor Milton Santos, grande nome da geografia, chamou em uma de suas obras de “espaço do acontecer solidário”, conceito um tanto complexo que não cabe nesta crônica.

 

Com efeito, enquanto o pesquisador trabalha o conceito, o cronista trabalha a palavra. Se estivesse sentada comigo na praça de alimentação, Maria Adélia corrigir-me-ia, dizendo que não é o assento que constitui um lugar, mas, sim, eu em meu assento, junto com os demais indivíduos em seus respectivos assentos na lanchonete ou na praça. E que, às onze horas desta noite, enquanto escrevo este texto, não há mais lugar algum nos estabelecimentos que visitei durante o dia, pois estes já estão todos fechados e não há mais gente lá. Amanhã, quando abrirem de novo, serão constituídos neles novos lugares, diferentes dos que presenciei hoje.

 

Terminando de comer o meu sanduíche, fui a uma loja próxima olhar as capas de alguns discos musicais. Ao retornar à praça, o assento que ocupei — e que desocupei — já estava novamente ocupado, por outrem. Mas não foi preciso, como na lanchonete, pedir licença ao novo usuário daquela cadeira. Havia vários outros assentos disponíveis nos quais eu poderia me sentar — porém, não escolhi nenhum deles, pois já estava tarde e preferi voltar para casa.

 

Àquelas horas, a pessoa que me tomou um assento na lanchonete já deveria ter saído de lá também, desocupando a cadeira que, provavelmente, já deveria ter sido ocupada por outra pessoa. Para a sociedade burocrática de que infelizmente fazemos parte, se nos ausentamos por um instante de uma mesa à qual estamos sentados, devemos, ao retornar a ela, apresentar uma comprovação incontestável pautada em uma jurisdição não escrita de uma convenção social, de que somos coercitivamente signatários, que garanta ao cidadão brasileiro o simples direito de acomodar as próprias nádegas em um assento público.

 

Aparentemente, a partir das minhas leituras e das minhas vivências ocupando assentos, um lugar faz parte do meu mundo se nele há algo de mim. No caso de um assento, esse algo deve ser um objeto visível, como uma blusa. Mas quem teria coragem de deixar uma blusa em uma praça de alimentação sem supervisioná-la? Ambientes como o de um cinema ou de um espetáculo têm regras diferentes: reservamos nosso assento previamente. Se não o fazemos, não temos direito a assento algum.

 

Em filas, o esquema é menos estático. Às vezes, quase sempre, vou sozinho a eventos de que participo. Se, antes de ingressar neles, preciso esperar em uma fila, não posso me atrever a sair dela, por qualquer motivo que seja. Do contrário, terei de voltar para o seu final. E, como “a fila anda”, consoante o ditado, a matemática de “objeto no lugar = meu lugar” não funciona, a menos que se trate, quem sabe, de um objeto que se mova, como um carrinho de controle remoto, embora eu nunca tenha testado essa hipótese.

 

Com uma companhia, seja na fila, na lanchonete ou na praça de alimentação, a situação fica bem mais fácil: ao me ausentar, posso simplesmente pedir ao amigo para que “guarde o meu lugar”. Não é preciso, neste caso, “marcar” o meu assento. Se alguém se aproxima dele na minha ausência, o companheiro diz: “tem alguém aí” — apesar de não haver, de fato, alguém ali, naquele momento. Só minha sombra.

 

Assim pensando, na solidão de hoje percebi que um amigo pode, além de dividir comigo batatas fritas enquanto comemos sanduíches, ajudar-me a resistir à racionalidade perversa dos seres humanos que tentam possuir assentos públicos impiedosamente. O direito ao assento, portanto, é mais bem assegurado se temos uma companhia. Já preparado empiricamente, na próxima vez em que eu lanchar fora de casa, não irei só.

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