O Estadão e a defesa do marco temporal

 


Uma das melhores formas de se ter uma ideia da “índole” de um jornal, isto é, de se conhecer a quem ele serve, é lendo os seus editoriais. E, tratando-se dos jornais hegemônicos brasileiros, como O Globo, Estadão e Folha de S.Paulo, não é preciso ser um analista de discurso para ver, de cara, que seus compromissos, muitas vezes, não são os melhores. A Folha, por exemplo, em editorial de setembro do ano passado, defendeu a volta às aulas presenciais ainda naquela época, argumentando que “Nesta altura, torna-se claro que a chamada segunda onda da pandemia é evento incomum”. (Recentemente, contrariando a falsa afirmação desse jornal, a quarta onda de covid-19 chegou à Alemanha.) Já o Estadão, em um de seus editoriais mais famosos, “Uma escolha muito difícil”, de outubro de 2018, demonstrou uma “incerteza” e uma falsa neutralidade nas eleições presidenciais — um de seus piores editoriais da história, que desmascara a sua imparcialidade de fachada até os dias de hoje.

Mas, além da leitura dos editoriais, há outra forma muito eficaz e prática de se conhecer a quem um jornal está a serviço: ler o seu conteúdo patrocinado. A prática de publicação de textos patrocinados por empresas e pessoas — a que chamo “jornalismo de encomenda” — é até mais explícita, nesse aspecto, do que a manifestação de opinião por meio dos editoriais, na medida em que já fica informado, de cara, o patrocinador. A partir daí, basta “ligar os pontos” e observar que papel o patrocinador representa no contexto da matéria. E o jornal, por tê-la publicado, passa a exercer a mesma função.
 
Ontem (22/08), o Estadão, em sua sessão de economia e negócios (note-se bem!), publicou o texto “Julgamento do STF pode afetar propriedades em todo o Brasil”, elaborado pelo AgroSaber, plataforma a serviço do agronegócio e defensora frenética do marco temporal — tese jurídica apoiada por ruralistas que determina que as terras indígenas só poderão ser demarcadas se os povos originários conseguirem comprovar que as estavam ocupando antes de 1988. Na prática, o marco temporal é um instrumento para dificultar e fragilizar a demarcação de terras indígenas, abrindo espaço para o agronegócio, que não precisa comprovar coisa alguma.
 
No texto publicado pelo Estadão, é afirmado que “Novas demarcações de terras indígenas teriam um impacto negativo de R$ 1,95 bi em Mato Grosso”, e que, se o marco temporal for derrubado, conforme reivindicam os movimentos indígenas, poder-se-ia “fortalecer conflitos no campo”, além de acarretar “prejuízos econômicos para o agronegócio”. Na mesma publicação, alterando-se completamente o gênero textual, há uma entrevista com Aldo Rabelo, ex-ministro da Defesa e ex-deputado federal que, apesar de já ter sido filiado ao PCdoB, era amigo da bancada ruralista. Na entrevista, Rabelo defende o marco temporal, afirmando que ele ofereceria “segurança jurídica aos não índios, mas também aos índios e seus descendentes”.
 
O Estadão, possivelmente prevendo críticas a esse posicionamento e em tentativa de desvencilhar qualquer culpa sobre o texto, afirmou, na publicação, que esta é “de responsabilidade do anunciante”. Ora, de fato, o texto é de responsabilidade do anunciante. Mas o jornal, inegavelmente, é também responsável pela sua publicação! Com efeito, uma coisa é um jornal se eximir da responsabilidade de comentários ofensivos de internautas em suas postagens, ou de certos anúncios do Google em seu site; outra coisa, muito diferente, é tentar se inocentar do posicionamento de um texto que foi publicado de modo oficial em seu site. Dando voz a quem defende o silenciamento indígena, o Estadão corroborou esse silenciamento.
 
Não obstante, para quem foi muito difícil escolher entre um professor favorável à democracia e um político defensor da tortura e da ditadura militar, deve ter sido muito fácil permitir-se como veículo de propagação de afrontas aos povos indígenas. Já dizia o poeta e jornalista Reynaldo Jardim: O que se odeia no índio / não é apenas o ocupado espaço. / [...] O que se odeia no índio / é a permanência da infância. / E a liberdade aberta / se odeia no índio.”

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