No estrangeiro



Fiquei surpreso quando, em um ponto de ônibus, perguntei a um homem do campo onde ele morava. Com seu jeito simples de se expressar, ele me respondeu que morava “no estrangeiro”. Pensei que ele se referia a qualquer torrão de terra fora do município — ou talvez do estado, mas não mais do que isso. Seu sotaque era brasileiro. Sua cara e seu corpo eram brasileiros. Além do mais, sua roupa era tão simples (e brasileira) que não me impressionaria se o homem não tivesse sequer uma carteira de identidade.


“E onde é que fica o estrangeiro?”, perguntei. Tirando o chapéu, ele apontou para os fundos da cidade e me explicou o caminho: “Atravessa a ponte, daí vai seguindo toda a vida até a estrada de terra, e segue outra vida e vira à esquerda, e vai...” Fui enumerando e descobri que, ao todo, seriam necessárias cinco vidas para se chegar ao estrangeiro. Perguntei a ele: “São quantos quilômetros?”. “Uns trinta”, ele me disse. O estrangeiro ficaria, portanto, a apenas trinta quilômetros de mim.


Achei que o homem estivesse fazendo hora com minha cara, mas resolvi entrar na brincadeira. “Lá no estrangeiro também se fala português?”, perguntei. “Não, senhor. Dessa língua sei muito pouco, e não me vem com palavra difícil pra cima de mim, que não sei”. “E como se chama o lugar?”. “A gente chama lá de roça. Lá é a roça. Tem outro nome não. Tem apelido, mas o nome de batismo é roça”. Dito isso, o ônibus que o homem esperava chegou, e ele precisava partir.


Depois desse diálogo, percebi que não se tratava de uma simples brincadeira, e que ele não estava fazendo hora com minha cara, mas falando com seriedade. Achei melhor ir a pé ao meu destino, enquanto meditava sobre as palavras que eu havia acabado de escutar. Como diz a sabedoria dos antigos, andando se pensa melhor.


Tentei recordar as orientações que o homem me dera de como chegar ao estrangeiro e, consultando mapas em meu celular, encontrei uma região sem registro de nome, com poucas casas, poucas estradas e com um pequeno riacho entrecortando o relevo. Concluí que era ali o estrangeiro. Era ali que o Brasil não alcançava. Era como um Vaticano ou um San Marino dentro da Itália, mas com a diferença de que o “estrangeiro interno” era muito mais pobre do que o grande país. Era um Lesoto chamado roça dentro de uma África do Sul chamada Brasil.


Se o homem com que conversei tiver televisão ou rádio em sua casa, ele certamente já percebeu que o Brasil de que se dá notícia na mídia não é onde ele vive. Tudo o que se diz desse tal de Brasil, de sua corrupção, de suas avenidas, de seu carnaval ou de suas praias não se aplica ao seu torrãozinho de terra. Ele, de fato, vive no estrangeiro.


Guimarães Rosa, com sua habilidade imensa de dizer a verdade por meio da ficção, escreveu que “O sertão é sem lugar”. Madre Teresa, com sua simplicidade de dizer a verdade por meio da realidade, revelou que “Calcutá é todo lugar. Você pode achar Calcutá em qualquer lugar do mundo. Você precisa apenas de dois olhos para ver”. García Márquez, com seu realismo mágico, foi mestre ao descrever o entre-lugar latino-americano. Contudo, nenhum dos três descreveu com tanta precisão essa terra chamada roça do que o homem que nela habita.


A roça é sem lugar, é todo lugar, é entre-lugar. A única coisa que a roça não é, para o homem que conheci no ponto de ônibus, é o Brasil. Mas talvez possamos estar todos enganados... Talvez o Brasil seja lá na roça, e nós, na cidade, é que estejamos no estrangeiro.

Comentários

  1. Ontem fiquei imensamente contente ao saber que esta crônica acha-se, na íntegra, no trabalho “Plantando agroflorestas, colhendo transformações: transição agroecológica e alimentação em uma comunidade quilombola no Vale do Ribeira”, dissertação de mestrado de Ana Rita Silva, a quem agradeço a citação.

    A dissertação pode ser acessada no repositório institucional da Universidade Federal de São Carlos.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Prova

Miniconto

Compilação de pensamentos sobre aquela noite