Isto não é tudo, meu querido Quino
No
dia catorze deste mês, quando submeti um resumo expandido de meu projeto de
pesquisa “A ótica freiriana em Quino como recurso educacional” ao sétimo EnPE
(Encontro de Pesquisa e Extensão do campus
Patrocínio do IFTM), tive um estranho pressentimento de que eu faria uma
apresentação in memoriam. Ontem, no
aniversário de 56 anos de Mafalda, recebi a decisão editorial favorável à minha
apresentação no evento e à publicação do resumo em seus anais. E, hoje, recebi
a triste notícia de Quino havia falecido.
Mas quem foi Quino? E por que
relacioná-lo a Paulo Freire? Retiro um parágrafo de meu trabalho para explicar
um pouco:
“A
existência de uma intertextualidade significativa entre as produções de Paulo
Freire e de Quino pode ser presumida pelas semelhanças entre suas visões de
mundo. O desenhista argentino não ignorou a crise política pela qual passava
seu país e tentou refletir sobre a radicalização social crescente de sua época
(COSSE, 2014, p. 66). Suas tiras e seus cartuns, ao exemplo da personagem
Mafalda, escancaram as contradições das classes dominadoras e se posicionam a
favor dos mais pobres. O educador brasileiro, por sua vez, fez uma opção no enfrentamento
político e existencial a partir de uma pedagogia dialógica que desvela o mundo das
injustiças e que, por essa via, é capaz de construir a paz (CORTELLA, 2011,
p.7).”
Quino marcou — e seguirá marcando — gerações de grandes
leitores e desenhistas. Meu primeiro contato com ele foi por intermédio da
Mafalda, uma menina de personalidade forte.
“Mafalda
denunciou uma dura realidade, muito distante dos elevados padrões morais que a
política deveria representar. Isso foi reforçado por sua defesa de uma posição
do Terceiro Mundo que representava os excluídos da ordem internacional. Sua voz
foi vista como a expressão da consciência humanista da nova geração
politicamente comprometida.” (COSSE, 2014, p. 55. Tradução minha.)
Não obstante, a série de tirinhas da
Mafalda não é minha porção preferida da extensa obra de Quino — apesar de eu amá-la
muito: tenho um caderno e vários chaveirinhos com sua imagem, além do livro Mafalda: todas as tiras. Quando Quino
parou de desenhá-la, em 1973, ele passou a dedicar-se a uma série genial de
cartuns. Ao meu modo de ver, a genialidade de Quino está presente em toda a sua
obra; todavia, sua expressão mais forte está em seus cartuns não relacionados à
Mafalda, que são menos conhecidos pelo grande público.
Tenho também o livro Isto não é tudo. Nele estão todos esses
outros desenhos. Foi justamente quando tive contato com essa face da
genialidade do cartunista argentino, no ano passado, que despertou em mim a
vontade de participar de um projeto de pesquisa que estudasse sua obra. Meu
projeto anterior investigava cartões postais soviéticos na abordagem da
semiótica social. Considerei a ideia de aplicá-la também às produções do
desenhista, mas achei que seria ainda mais interessante explorá-las a partir de
uma perspectiva educacional. Foi então que tive a ideia de ligar Quino a Paulo
Freire.
Assim fiz. Pedi novamente que minha
professora Márcia, de espanhol, fosse minha orientadora. Inscrevemos o projeto,
fomos bem colocados. A pandemia não nos paralisou. Realizamos práticas
educacionais remotas com alunos do ensino médio e do centro de idiomas do campus Patos de Minas do IFTM.
Alcançamos bons resultados.
“A
leitura de Mafalda por estudantes é uma aliada na promoção da pedagogia
libertadora freiriana. Foi pensando nos oprimidos que Freire escreveu seu
famoso ensaio, como uma forma de, por meio da educação, caminhar com eles na
construção de uma teoria que visasse à fundamentação e à reflexão da própria
ação libertadora (PADILHA, 2008, p. 25). Dessa forma, o método do educador, que
busca libertar os alunos da opressão e dos preconceitos, ganha força nos
desenhos de Quino, uma vez que ‘Mafalda [...] representou a consciência moral
forjada pelo mandato igualitário que clamava pela inclusão social e que considerava
o ensino público e obrigatório como forma de proporcionar melhores
oportunidades a todos, e expressou um sentimento de culpa pelo racismo de sua
própria classe.’ (COSSE, 2014, p. 60. Tradução dos autores.)”
Quino, assim como todo ser humano, é
mortal. “Humanos nascemos”, como diz
um livro do desenhista, lançado em 2010. Porém, não é sempre que “humanos
morremos”. É o caso desse genial autor — ao menos, no sentido figurado: em suas
figuras, o autor continuará vivendo por muitos e muitos anos...
Isto não é tudo, meu querido Quino.
______
Referências utilizadas no
texto:
COSSE, I. Mafalda: Middle
Class, Everyday Life, and Politics in Argentina, 1964-1973. Hispanic American Historical Review, v.
94, n. 1, p. 35-75, 2014.
CORTELLA,
M. S. Paulo Freire: um pensamento clássico e atual. Revista e-Curriculum, v. 7, n. 3, 2011.
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