Flores a Bicalho



Bicalho nunca havia recebido flores na vida. Talvez porque nunca houvesse namorado. Mas recebeu. Ontem, em seu próprio apartamento. A namorada visitara-o trazendo-lhe flores. A princípio, Bicalho alegrou-se com o agrado, cheirou-as e agradeceu à amada. E, cuidadosamente, meteu-as em um vaso com água, de um vidro esverdeado. Mas, é claro, antes de metê-las, recebeu também a namorada, além das flores. Recebeu-a com alegrias, cheiradas etc. Jantaram, beberam etc. E a amada foi, enfim, embora.

Só então Bicalho foi olhar as flores, enquanto lavava os pratos. E percebeu que as flores não eram flores quaisquer. Eram rosas. E não eram rosas quaisquer. Eram rosas amarelas. Quem diria que as primeiras flores que receberia na vida seriam amarelas! Por um momento, pôs-se a pensar que as primeiras flores que ganharia na morte seriam brancas. Mas depois se lembrou de ver flores de outras cores no velório da vovó Bicalho e, dois meses depois, no velório do tio Bicalho do meio.

Por que cores e flores têm significados? Pôs-se a pensar. E decidiu pesquisar se flores amarelas teriam algum significado. Viu que poderiam significar disposição, prosperidade etc. Pensou, então, que, se pesquisasse especificamente por rosas amarelas, sobrariam menos opções. Que pena.

Bicalho leu em algum lugar que o profeta Mohammed andava desconfiado de uma de suas esposas e pediu ao anjo Gabriel que o ajudasse a descobrir se a amada era-lhe ou não fiel. Então a amada meteu um buquê de rosas vermelhas em não se lembra de onde e as rosas se tornaram amarelas. E isso significava que a amada era infiel a Mohammed.

Bicalho sentou-se sobre a mesa da cozinha, em que fora servido o jantar. Tentou se lembrar de se as rosas não eram ainda vermelhas quando sua amada chegou. Pensava serem amarelas mesmo, mas desconfiava de si próprio nesse aspecto. E, se desconfiava até de si mesmo, como não desconfiar da amada? A amada... que lhe dera rosas amarelas.

Nem a namorada nem Bicalho sabiam qualquer coisa de anjo Gabriel ou de profeta Mohammed. Mas, talvez, uma coisinha ou outra soubessem de símbolos. Mas, não mais que isso. Nada que uma pesquisa básica na internet não pudesse dar. “Dar presente para o namorado simbolizando traição”. Possivelmente teriam sido essas as palavras digitadas pela amada antes da escolha da compra das flores.

Em quê Bicalho errara? Pôs-se a pensar. Amara a amada desde seu terceiro encontro com ela. E, agora, após aceitar seu insultuoso presente, um desagrado mascarado de agrado, ainda o colocara em uma límpida fonte de água clorada. Resolveu tirar as flores do vaso de vidro e atirá-las no de porcelana, também chamado privada. Mas arrependeu-se. As devassas rosas amarelas não sumiriam tão facilmente de lá.

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