O dia em que fui mulher
Já fazia muito tempo que eu
não, por uns dez ou vinte minutos, pensava filosoficamente em minha infância.
Fazia-o, em realidade, apenas quando ainda existiam almoços de família – em
uma era semirremota – em minha família, e tão somente nessas protocolares
ocasiões das quais, mesmo sendo excessivamente enfadonhas, eu participava.
Nessa era semirremota, era eu um
mero adolescente – como a esmagadora maioria de adolescentes com que, por cinco
dias na semana – e, não raro, seis–, convivo profissionalmente na escola em que
leciono. Assim são eles: a despeito de serem amantes ou inimigos declarados da
História – a disciplina que leciono –, praticamente todos parecem negligenciar,
ou simplesmente não conhecer, a história dos próprios jovens, que, basicamente,
pode ser resumida nesta sucinta frase de Millôr Fernandes: Todo jovem pensa que
acabou de inventar a juventude.
Ora, é claro, também fui eu um
jovem. Também fui eu um adolescente que se considerava, em maturidade, adulto.
Mas, antes disso, fui eu também uma criança grandona que se considerava e se
autodeclarava adolescente. E é justamente esta a parte de minha vida da qual
tenho mais arrependimentos. Muito mais arrependimentos tenho de minha
“pré-adolescência”, que nada passa da pior infância, que tenho, por exemplo, de minha escolha de cursar História em vez de Filosofia – ou de ter recusado
um pedido de namoro oportuno no ano final de minha graduação.
Sem embargo, foi em um dia
qualquer que, recentemente, ao assistir ao terceiro filme da comédia brasileira
Minha mãe é uma peça, dirigido por
Susana Garcia, recordei meus tempos de pirralho. Foi por meio de uma tocante
cena, em que Dona Hermínia e seu filho Juliano foram a uma festa temática de Sítio do pica-pau amarelo, que me
lembrei de minha época de menino que se imaginava homem.
Ora, e durante essa mesma
época, esse mesmo menino também, por um dia, imaginou-se mulher.
Não foi sem muita reflexão
madura, algo atípico para minha idade. Talvez eu estivesse com onze anos. Pelo
contrário: passei cerca de duas semanas mastigando a ideia, maturando-a – até
que, decidido, resolvi acatá-la.
A ideia se originou – recordo
como se fosse hoje – na fila do almoço, em minha escola. Uma aluna da última
série, de corpo esbelto que muito me atraía, estava à minha frente. Em um
rápido comentário com uma amiga, disse ela algo que me marcou de modo inesquecível:
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Anos mais tarde, descobri que a frase
não era dela, senão da ativista Simone de Beauvoir.
A verdade é que não me
importava de quem era o pensamento. O que me importava, mesmo, era que viera da
boca de uma própria mulher, e, sendo assim, deveria ser digno de fé. E, então,
pensei que também eu poderia construir e assumir uma identidade feminina, nem
que fosse por um único dia de minha vida.
Claro que contei meu plano a ninguém.
Minha vontade era de pedir mais informações à discente sedutora, mas eu acreditava
não ser homem o suficiente para tal ato de coragem. Algum tempo depois, fui à
escola sendo mulher. Decidi não usar nome social, nem vestir-me com as roupas
de minha pequena mãe. Não usei maquiagem, até mesmo porque, naquela época,
nenhuma pessoa ia à escolinha maquiada.
Com efeito, ninguém notou que
virei mulher. No dia em que mudei meu gênero, conservei minha voz e meu
interesse por mulheres; especialmente, por aquela da última série. Hoje, a
ideia de que fui homem, mulher e homem sem qualquer tipo de arrependimento é-me
um pouco estranha. Não sei se, de fato, posso afirmar que já fui mulher. Creio
que as mulheres mesmas não concordariam comigo. Nem mesmo a referida Simone. Eu
era só uma criança.
Talvez, se eu tivesse cursado
Filosofia, eu tivesse uma resposta mais concreta para o caso; ou não: eu teria,
possivelmente, apenas mais e mais perguntas.
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