Desabafo solitário



Hoje tentei escrever, algumas vezes, um poema por meio do qual eu desabafasse minha angústia de ver seres humanos pedindo a reabertura imediata do comércio. A verdade é que eles sabem (ao menos, tenho a ingenuidade de pensar que eles saibam) que o pior ainda está por vir ao Brasil. O ápice da Covid-19 não chegou aqui. E está logo aí. Como desejar, sabendo disso, que tudo volte ao normal?

Sei de pessoas que estão vivendo normalmente, com os mesmos hábitos de sempre. Pergunto-me se esses cidadãos agiriam da mesma forma se o presidente deles fosse minimamente favorável a cuidados de saúde pública. Dizem que não assistem à Rede Globo por esta “fazer a mente do povo”, mas, se lhes é enviada uma imagem por WhatsApp em que está escrito, em Comic Sans, que há mais mortes por dengue no Brasil em uma semana do que por coronavírus, são capazes de crer piamente nela e reagir com emojis de palminhas.

Bolsonaro é inapto a governar o país. Seria uma benção se uma junta médica atestasse o que muitos – incluindo eu – já suspeitam: o presidente não goza de capacidade mental mínima para a governança. E, assim, Bolsonaro seria interditado. Não seria um alívio? Bem que isso poderia ocorrer na manhã de amanhã, não é mesmo? Assim, poder-se-ia dispensar um demorado processo de impeachment, que só viria a calhar depois de a pandemia ter passado.

Contudo, as coisas não andam no tempo que os humanos desejamos. Independe de nossa vontade que o número de mortes pare imediatamente de crescer, e que o presidente seja interditado amanhã cedo. De igual forma, independe da vontade humana que o comércio volte na segunda-feira. Ainda assim, se pensarmos no tempo a médio e longo prazo, o que desejamos – e, principalmente, planejamos e executamos – tem papel decisivo. Se a população estará segura e transitando daqui a alguns meses, sim, depende de nossos esforços conjuntos e individuais. E aqueles que acreditam se tratar de uma simples “gripezinha” poderiam ser os primeiros em trabalhos voluntários.

Ora, voltando ao início, não consegui escrever o poema que almejei. Minha falha independeu de minha vontade: há versos – já muito conhecidos – que resumem tudo o que eu gostaria de falar. E que, reunidos, compõem a atemporal canção “Paciência”, de Lenine. Não tenho o talento de Lenine que, além de criar versos, é capaz de transformá-los em canção. Pois, quem concentra suas leituras reflexivas em fake news, jamais investiria seu tempo em ler um poema que o critica, ou um texto de cinco parágrafos, como este. Mas, sendo música, o clamor tem maior chance de ser escutado, ainda que o ideal fosse por vias sertanejas. Coisa de gado.

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