Os perturbadores Clarice e Alvim



Acredito que, a princípio, não seria sensato de minha parte escrever sobre Clarice Lispector e Roberto Alvim em uma só crônica – constituir-se-ia, no mínimo, um desrespeito a Clarice. Não obstante, tentarei, maquiavelicamente, justificar a mediana comparação entre a brilhante escritora e o infeliz secretário especial da Cultura por intermédio da final conclusão que tirarei com o presente texto.

Recentemente, assisti a uma entrevista que Lispector concedera ao programa Panorama, da emissora TV Cultura, no ano de sua morte, 1977. Fiquei profundamente incomodado. Suas palavras frias em voz lânguida, a cadência de suas orações voadoras que pairavam na fumaça viciosa de triviais cigarros e seu completo desinteresse em relação às perguntas que lhe tiravam o sossego eram perturbadores.

Essa foi a primeira vez que escutei a voz de Clarice. Com efeito, baseando-me superficialmente em seus escritos, eu imaginara alguém com habilidade de fala invejável e poderosa capacidade de persuasão, bem como uma pessoa com gosto enorme por perguntas. Com efeito, quase todo o estereótipo formulado por mim caiu por terra.

Percebi imediatamente, já no início da entrevista, que Lispector estava “nem aí” para a câmera, para o entrevistador e para quem estivesse lhe assistindo. Em sua idiossincrasia tão sua, não esquivava nem atacava as interrogações que lhe apareciam, fazendo-as simplesmente “passar direto”. Murmurava: “Não sei”, “não me lembro” – e isso lhe bastava.

Lembrei-me de minha entrevista à emissora patense NTV no início de 2019, na qual divulguei o lançamento de meu primeiro livro, Parnaso. Ora, se eu respondesse às perguntas “à Clarice”, alguma vivalma além de minha família compareceria ao lançamento da obra?

Sem obstáculos, pouco tempo depois de eu assistir à entrevista de Clarice, deparei-me com um vídeo em que falava o secretário especial da Cultura, Roberto Alvim. Novamente, fiquei incomodado com palavras frias e com a cadência de orações voadoras, mas que, desta vez, continham força e interesse.

A despeito de inexistirem perguntas ao dramaturgo, este estava ali para proferir respostas. E, mais ainda, estabelecer parâmetros. Separar o joio do trigo, em sua Weltanschauung própria. Espelhando-se no alemão Joseph Goebbels, ministro de Hitler no regime nazista, elegeu, como trilha sonora de seu discurso agressivo, o prelúdio de Lohengrin, do compositor romântico Richard Wagner (1813-1883), o qual, obviamente, não era apoiador de Hitler, mas que seus preceitos de uma arte enraizada na grandeza mitológica de outrora foram rapidamente apropriados pelos nazistas, os quais pregavam uma ideologia de regresso a uma Alemanha gloriosa do passado.

Em setembro, Alvim havia atacado a talentosa Fernanda Montenegro, afirmando por esta sentir desprezo e acusando-a de mentirosa, devido à “deliberada distorção abjeta dos fatos” da atriz, nas palavras do secretário. Na época, lembro-me de eu ficar indignado com toda a repercussão negativa após a sessão de fotos de Montenegro para a inteligente revista literária Quatro cinco um, a qual eu já acompanhava há tempo.

E agora, ao lado de uma cruz transversal de dois braços e de um retrato emoldurado de Jair Bolsonaro, Alvim crucificava a essência da cultura e da arte genuínas: a liberdade de expressão. “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional”. Momentos depois, uma grande repercussão se formou. Principalmente, por “quem foi de aço nos anos de chumbo”, em verso da canção “História pra ninar gente grande”, de minha querida Mangueira.

A nação verde e rosa canta: “Desde 1500 tem mais invasão que descobrimento/Tem sangue retinto pisado/Atrás do herói emoldurado/Mulheres, tamoios, mulatos/Eu quero um país que não está no retrato”. Se Alvim gosta de ler Clarice Lispector, “não sei”. Nada obstante, se tivesse se espelhado na escritora e dito frases esquivas, teria continuado em seu cargo. Citando Maquiavel, “um dos princípios essenciais da sabedoria é o de se abster das ameaças verbais ou insultos”.

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