O político ciclo da água


 

Aprendi o ciclo natural da água enquanto eu morava no campo. Os professores de minha escola sentiam-se no dever de ensinar a todas as crianças tão essencial lição da natureza: como a água passa da superfície à atmosfera, da atmosfera ao subterrâneo, do subterrâneo à superfície.

Foi somente mais tarde, quando eu já era adolescente, que entendi que, em seu ciclo, a água também atravessa dimensões políticas. Foi somente depois de certa idade que descobri que muitas pessoas sentem sede e as autoridades que as representam nada fazem para socorrê-las. E foi somente após alguma experiência que compreendi que oferecer um gole de água potável a um desabrigado não é um ato vão.

Mas demorou ainda um pouco mais para que eu observasse que o âmbito político da água não ocorre apenas quando esta está em seu estado líquido, senão também em suas formas sólida e de vapor.

Li em livros e notícias que o gelo dos polos da Terra estava derretendo. Vi fotografias de satélite de “antes e depois” provando-me que a industrialização agressiva e disseminada em todo o globo era culpada da intensa diminuição do volume de gelo em áreas sumamente importantes de meu planeta.

Fui notando que, se um país não adota medidas rigorosas a fim de proteger o meio ambiente, pessoas mal intencionadas consequentemente passam a ter mais liberdade para explorar a natureza por meio de desmatamentos e queimadas, roubando a umidade advinda da imponente floresta. Fui notando que dias demasiadamente quentes e secos não correspondiam aos relatos orais de meus avós sobre seus tempos de juventude, e que, em contrapartida, eram esses mesmos dias árduos que faziam parte da minha.

Enfim, fui crescendo e sabendo que a água, bem tão imprescindível, estava sendo simplesmente detonada pelos humanos.

Na noite desta última quarta-feira, a Câmara dos Deputados de meu país aprovou o texto-base de um projeto que visa a facilitar a exploração do saneamento básico pela iniciativa privada. Como muito apontam analistas, a universalidade da água está abalada.

No Brasil, por lei, a água é um bem público dotado de valor econômico. Dessa forma, sua privatização é inconstitucional. O que é privatizável é o serviço público, e não o bem. No Chile, o hídrico é particular. E a consequência de tal escolha governamental foi impor outra escolha a donas de casa chilenas: a de lavar roupa ou cozinhar alimentos.

Sinto-me no dever de escrever este texto sobre o tema. Acontecimentos recentes têm-me feito pensar que os cidadãos do país de Pablo Neruda têm muito a ensinar a nós, brasileiros, acerca de resistir a ações de governantes secos que ignoram os mais desfavorecidos.

O fim do ciclo universal da água potável não é quando esta, após ser coletada de um rio e percorrer longos dutos, chega a um vaso sanitário – senão quando a própria água torna-se privada.

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