Caduquice elegida



Desconheço família que não critique a si própria. Recentemente, eu e alguns parentes começamos a apontar defeitos em nós mesmos. Minha tia perguntou-me: “Qual é o seu?”. Não precisei responder. Minha avó, que possivelmente conhece-me mais do que minha consciência, disse por mim: “Memória péssima”.

Arlete, minha psicóloga, discordaria. No primeiro semestre deste ano, ela aplicou-me um teste a fim de examinar minha memória e constatou que esta é, em suas palavras, “excelente” e “precisa”. Contudo, tratou-se de memória imediata, como consta algum relatório que não me recordo onde está.

Mas, voltando à ocasião informal, a conversa continuou. Meu tio lamentou-se de forma risonha: “Meus defeitos encheriam um balaio”. Minha tia não perdeu tempo em comentar: “Os do Teófilo não encheriam porque ele não saberia onde meteu o balaio”.

Ora, não entendo muito de memória(s), porém, se a(s) minha(s) não me engana(m), há mais de uma. E, talvez, a mais defeituosa em mim seja a de médio prazo. Se minha mãe pede-me na quinta-feira que eu vá comprar verduras no sábado, o dever não me vem à mente quando chega o fim de semana. Na verdade, agora que assim estou a pensar, parece-me ser isso uma boa justificativa para meus estudos de última hora, antes de exames. Se eu os fizesse com maior antecedência, seriam em vão. Que meus professores leiam esta crônica.

Todavia, por sorte, algo (ainda) não me molesta: a confusão de memórias passadas. Neste caso, uso “memórias” no sentido de acontecimentos e fatos. Creio que, infelizmente, o presidente Bolsonaro é acometido por esse mal, pois, neste mês, afirmou que “nunca teve ditadura no Brasil, [...] onde você tinha direito de ir e vir, você tinha liberdade de expressão, você votava”.

Há numerosos problemas neurológicos e psicológicos que podem levar a confusões de ocorridos, podendo estas terem seus inícios observados por sintomas indiciais. Isto é compreensível. Sem empecilhos, Gonzaguinha já cantava no século passado: “Quando amanhecer/é que eu quero ver quem recordará./Ê, eu não posso esquecer/essa legião que se entregou por um novo dia”. A canção, “Pequena memória para um tempo sem memória”, ganhou nova versão este ano por Elza Soares, em seu álbum Planeta Fome

Muitas pessoas são assim: parecem ter uma memória travessa, que esconde e troca a História – por escolha pessoal. E a elas não adianta dizer a verdade, seja uma ou mil vezes, pois sofrem de caduquice elegida. Gosto muito de um significado de “caduco”, o qual consta no formidável Houaiss: “que passa rapidamente; passageiro, transitório”. Assim são os caducos por opção: efêmeros. 

Mas quanto a nós, que ao menos temos uma “pequena memória”, eleita ou eleitora, cabe o dever de nos lembrarmos, uns aos outros, do que não pode ser esquecido: nosso passado. Do contrário, este nos condenará neste verão – e em outras épocas do ano.

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