A língua, Clarice e eu



Hoje, quatro de novembro, é o dia nacional da língua portuguesa. E, certamente, uma das maiores declarações de amor ao nosso idioma foi feita por Clarice Lispector: “Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português”. A declaração é ainda mais grandiosa por mencionar uma terceira personagem, detentora de notável beleza, mas que não consegue superar os encantos e deleites da relação irresistível entre a autora e seus vocábulos cotidianos.

Clarice foi uma amante da nossa língua. E, hoje, é esta que tem a escritora como um de seus mais importantes nomes. “Sou brasileira naturalizada, quando, por questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor”.

O processo de naturalização era-lhe anseio urgente, por causa da guerra e do desejo de casar-se com um diplomata brasileiro. Assim, aos vinte e um anos, idade mínima para o pedido, escreveu uma carta ao então presidente Getúlio Vargas, cujo recorte, em que ela descreve a si própria, exponho a seguir: “Uma russa [...] que não conhece uma só palavra de russo, mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo”.

Não tenho recordações precisas a respeito de minha própria gênese de escrita literária. Contudo, sei que foi em 2013 que comecei a dedicar maiores períodos de tempo ao ato de escrever – à época, eu tinha apenas nove anos. A verdade é que tenho um arquivo, em meu computador, de exatas duzentas páginas e pouco mais de 40 mil palavras, finalizado em 20/01/2014, como eu mesmo constei em seu término – ao meu decênio de idade.

Trata-se de uma “obra” de fantasia infantojuvenil, a qual foi mostrada por mim a apenas uns poucos amigos de minha infância, e, posteriormente, esquecida. Mas não foi essa minha primeira tentativa de escrita de um livro; muito pelo contrário: estimo que, ao longo de minha infância, eu tenha tentado produzir, ao menos, quinze livros diferentes, e não estou a empregar aqui pleonasmo.

Por sorte, tenho tudo arquivado: nenhuma ideia se perdeu. Mantenho ainda os personagens em minha mente. Não raro, dialogo com alguns; ou senão penso: “O que George faria se estivesse em meu lugar?”. Ou: “O que eu faria se me encontrasse na Aldeia do Vento?”.

A língua portuguesa é minha ferramenta primordial de trabalho. E de lazer, como o foi para Clarice. De forma semelhante à brasileira inata, usei do português para escrever livros, crônicas e cartas – inclusive as de amor, que, como bem define Fernando Pessoa, são sempre ridículas (embora eu as tenha também feito em outros idiomas românicos, as quais, assim julgo, conseguiram ser mais ridículas ainda).

Enfim, apenas lamento que, ultimamente, a boa amiga gramática tenha sido tão desprezada em processos seletivos, dando lugar à hegemônica interpretação textual, que, convenhamos, não é particular de nossa língua, senão se estende a toda e qualquer disciplina e idioma. Que saibamos valorizar não somente o universal ou o estrangeiro, mas também nossa identidade – que, no dia de hoje, tem em suas palavras e obras o destaque nacional.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Prova

Miniconto

Compilação de pensamentos sobre aquela noite