As hienas somos nós



Sem dúvidas, uma das melhores canções do álbum Deus é mulher, da cantora brasileira Elza Soares, é “Hienas na TV”. Conheci a música assim que a faixa foi lançada nas plataformas virtuais. Desde então, cheguei, inclusive, a valer-me dela para construir repertório sociocultural em redação do Enem.

Dito isso, segue a primeira estrofe da composição: “Sim, digo sim pra quem diz não;/e pra quem quiser ouvir, eu digo não./Não, digo não porque eles vêm,/eles vêm pra devorar meu coração./Vêm, onde e quando você vê/as hienas na TV, essa visão./Vêm, se arrastando pelo chão,/gargalhando sobre nós./Eu digo não” – o ritmo faz-me recordar a capoeira, jogo de resistência.

Fato é que, recentemente, enquanto eu estava a passar tempo usando o Twitter, verifiquei que um vídeo muito desrespeitoso havia sido exposto ao público por intermédio da conta oficial do presidente da república, por um curto instante – e posteriormente apagado.

Por prontidão dos jornais e usuários, contudo, a mídia fora rapidamente salva, e divulgada uma segunda vez – nesta, com severas críticas a Bolsonaro. No vídeo divulgado pelo político, este figurava como um voraz leão em meio a hienas, as quais representavam, entre outros, diversos veículos de notícias e partidos políticos (incluindo o que mais apoiou o presidente em sua campanha de 2018), a Ordem dos Advogados do Brasil, a ONU, a organização Greenpeace, o feminismo e o Supremo Tribunal Federal.

Sem empecilhos, outro leão aparece na calamitosa história: o “Conservador Patriota”. E não para por aí; exclamações de impacto são exibidas: “Vamos apoiar o presidente até o fim!”, “E não atacá-lo!” (aliás, gostaria de comentar que, após “não”, usa-se próclise), “Já tem a oposição pra fazer isso!”. Por fim, a bandeira do país com a forma humana do presidente triunfa nos segundos derradeiros.

Ora, parece-me que as hienas passaram a habitar também o “Tt”. Só que, nesse novo espaço, o grande inimigo de quem estima o direito de dizer “sim” e “não” tornou-se o próprio rei dos animais. O leão objetiva assustar o não, mesmo que este venha de bases democráticas – em suma, deseja sustá-lo.

Algum tempo depois de minha fastidiosa descoberta na rede, um pedido de desculpas presidencial foi feito. Não é assim que funciona. Nem se tivesse sido sincero – o que não foi – funcionaria. Hienas são animais sagazes (aprendi isso com o filme O rei leão) e que não costumam perdoar tão fácil. E desta vez, elas somos nós, brasileiras e brasileiros, das mais distintas concepções e silepses políticas. E ouso afirmar: são também os conservadores patriotas.

As hienas foram atribuídas a nossa identidade por Bolsonaro (seja qual for o substantivo próprio que anteceda esse sobrenome). Não ignoremos esse ato. A força de Elza está aí para gritar a quem ainda tem possibilidade de expressão: o leão pode “se matar de rir; mas rir no fim, jamais”.

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